Poetas Cearenses
Poetas Cearenses
Antônio Thomaz
CONTRASTE
Quando partimos, no vigor dos annos,
Da vida pela estrada florescente,
As Esperanças vão comnosco á frente
E vão ficando atraz os Desenganos.
Rindo e cantando, céleres e ufanos,
Vamos marchando descuidosamente...
Eis que chega a velhice de repente,
Desfazendo illusões, matando enganos.
Então nós enxergamos claramente,
Quanto a existência é rápida e fallaz
E vemos que succede exactamente
O contrario dos tempos de rapaz :
- Os Desenganos vão comnosco á frente
E as Esperanças vão ficando atraz!
CONTRASTE
Quand nous partons, dans la vigneur de l´âge,
Par des sentires charmants e radoucis,
Nous trouvons les espoisres sur le passage...
Nous laissons em arrière les sourcis!
Riant, chantant, peut-être pas très sages,
Nous progressons superbes, éclaircis...
Mais voilà l´âge mur et ses présages
E tout espoir que sombre sans merci!
Nous comprenons, tout em nous émouvant,
Combien l avie est brève et mensongère...
Et qu´alors il se passe, bien souvent,
Du temps de la jeunesse le contraire:
Nous portons nos soucis — tous en avant;
Nous portons nos espoirs — tous en arrière!
A MORTE DO JANGADEIRO
Ao sopro do terral abrindo a vela,
Na esteira azul das águas arrastada,
Segue veloz a intrépida jangada
Entre os uivos do mar que se encapela.
Prudente, o jangadeiro se acautela
Contra os mil acidentes da jornada;
Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada
O vento, a chuva, os raios, a procela.
Súbito, um raio o prostra e, furioso,
Da jangada o despeja n´água escura;
E, em brancos véus de espuma, o desditoso.
Envolve e traga a onda intumescida,
Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura
O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.
Augusto Linhares
ALÉM, MUITO ALÉM…
Alongo os olhos da saudade, e a terra
Adusta vejo, qual se lê no poema:
— No horizonte ainda azula aquela serra,
Que foi meu berço e o berço de Iracema.
E o meu sertão em flor! E as vaquejadas...
E as alvas praias, verdes de coqueiros!
E os verdes mares, brancos de jangadas...
Como inda os vejo — os rudes jangadeiros!
De tudo aquilo ver, sonho acordado
Esquecendo reveses! E aos risonhos
E verdes anos meus volvo encantado!
Oh! como é verde o vale dos meus sonhos!
A SÊCA
Secaram-se de todos as lágrimas das fontes. GUERRA JUNQUEIRO.
Tudo a seca levou... Oh! maldição!
Tudo! O gado, o cavalo, a plantação...
Não cabe em peito humano tanta mágoa:
A fome, a sede, a peste, a morte — o inferno!
Só o homem resiste! e ainda espera o inverno,
Postos, no Céu, os olhos rasos d'água!...
A RENDEIRA
A rendeira o dia inteiro
Faz renda em sua almofada;
E em seu labor costumeiro
Nunca, nunca ela se enfada.
Bilros estala entre os dedos,
E ai, Jesus, como os estala!
Deles ouvindo os segredos,
Ouvindo deles a fala!
Os espinhos espetando
Para que a linha se prenda;
Vai tecendo, vai traçando
O seu desenho na renda.
E esta Aracne sertaneja,
Do meu torrão nordestino,
A vida inteira moureja,
Alheia ao próprio destino.
MÃE PRETA
Quando Dodora ao céu chegar — é minha crença,
E ao Chaveiro disser: — Dá licença, meu Santo ?
São Pedro, vendo-a, lhe dirá com certo espanto,
— Você, Dodora, não precisa de licença!...
E a porta lhe abrirá paternalmente. E ela,
Para de todo ser feliz numa tal hora,
Seu cachimbinho acende. Acende-o numa estrela;
Mas São Pedro lhe diz: — Não, aqui não, Dodora...
Barbosa de Freitas
UMA LÁGRIMA
A JOSÉ T. DE MIRANDA
"Repousa lá no céu eternamente
E eu viva cá na cerra sempre triste"
(Camões)
Morreu quem n'este mundo eu adorava,
Quem foi sempre na vida uma alegria!
Morreu aquele anjo que encantava
E que na terra chamado foi — Maria...
Legou-me a soledade, o pranto ardente,
A frieza fatal de uma aflição!...
E quem é que antevendo um morto ente
Não sente esmorecer-lhe o coração?!...
Alguém... mas eu que sempre a ouvia
Cantar, e sempre cheio de prazer,
Eu, que tive a desdita, oh! quem diria...
De vê-la em leito frio ali morrer!...
Expirou ao meu braço reclinada,
Lançou sobre mim o último olhar!...
Foi como o terminar d'uma alvorada"
Nas pavorosas ondas do alto mar!
Bomfim Sobrinho
NOIVADO FÚNEBRE
Negra tristeza o meu semblante encova.
Oh noiva minha, oh lírio meu fanado!...
Por que não vamos na mudez da cova
Em círios celebrar nosso noivado ?
Nos sete palmos desse leito amado,
Ao frio bom de uma volúpia nova
Embalará o nosso amor gelado
O coveiro a cantar magoada trova.
E os nossos corpos, gélidos, inermes,
Em demorados e famintos beijos
Serão depois roídos pelos vermes ;
E do leito final, que nos encerra,
Em plantas brotarão nossos desejos,
E nosso amor em flores sobre a terra.
Beni Carvalho
DESCENDO O JAGUARIBE
Outubro! O sol se esvai no ocaso poento,
À tarde entoando os salmos da agonia...
E pela encosta, e, pelo azul nevoento,
Passa, smorzando, ao longe, a ventania...
Por toda a natureza, um vão lamento
Curva-se à luz crepuscular, sombria;
E o mangue, a ramalhar, a litania
Da saudade, traduz na voz do vento.
Guaiam maretas brancas, uma a uma,
Como se um pranto em fio lhes brotasse
Dentre os flocos alvíssimos da espuma!
Esponta o luar no firmamento em fora:
Quanta tristeza, desse rio, nasce!...
Quanta saudade, nessas praias, chora!
CARLYLE MARTINS
ESTÓICO
Pelo caminho estreito em que ora sigo,
Pisando em cardos, sob um céu escuro,
Não vejo a paz serena de um abrigo,
Nem sol que aclare as trevas do futuro.
Encontrar leve alfombra não consigo,
Em toda parte o solo é áspero e duro,
Mas, no árduo impulso do vigor antigo,
Em seguir a jornada me aventuro.
Viva eu a dores infernais sujeito,
Pedradas rudes batam no meu peito,
Pervague à toa, esquálido e sozinho,
Sei que a mágoa da vida é transitória,
E hei de um dia cantar, de amor e glória,
Vendo estrelas e sóis no meu caminho.
CONTEMPLAÇÃO
Sempre a existência é calma nesta vila,
Onde os dias parecem ser mais lentos,
Toda paisagem mostra-se tranqüila ,
Sem vislumbres de queixas e tormentos.
Ao longe a serra, aberta em flor, se anila,
Envolvida em lençóis longos, cinzentos...
O gado passa, em demorada fila,
A mugir em tristíssimos lamentos.
Rincão de sonho e paz, nele consigo
Versos fazer a certo amor antigo,
Que floresceu em minha mocidade.
E quando a note vem, calma e sombria,
Diante do céu, minha alma se extasia,
Lembrando os dias idos, com saudade.
VESPERAL
A Leila Míccolis
No silêncio da tarde ansiosa que esmorece,
Aos lampejos do sol, que no ocaso declina,
Penso que aos céus se eleva o surto de uma prece,
Entre espirais de luz violácea e purpurina.
Verdeja muito ao longe a luxuriante messe,
Que encanta os corações e o espírito domina.
Do açude, como espelho ideal que resplandece,
Ouço o lento rumor das águas em surdina.
Aproxima-se a noite, ensombrado o horizonte,
Vislumbra-se o perfil azulado de um monte,
De sombras um cortejo envolve a imensidade.
Hora de indecisão, de torpor, de agonia,
Em que existe inquietude, ante a morte do dia,
E espalha-se por tudo a névoa da saudade.
CélSAR LEAL
ANTÔNIO CONSELHEIRO
Cheguei à Terra e em Canudos fiquei.
Cercado pelo muro das colinas
A missão do destino comecei.
Uma Igreja de rústica beleza
De pedra e cal ergui até os céus
Ao Ministro maior da natureza.
Ao concluir a enorme Catedral
Olhei a torre, levando até o bronze
A força do metal contra o metal.
Quando o sino vibrou tremeu a Terra.
A luz do Setestrelo se apagou
E contra os meus moveu-se o anjo da guerra.
(Uma guerra com um tiro se inicia
E logo se propaga como um fogo
Assim a de Canudos principia.)
Não quis lutar nem luta desejei
E se lutei foi para honrar a vida
Ao ver banhada em sangue a minha grei.
A arte da guerra eu ensinei aos meus
Ao enfrentar canhões com espingardas
— Tal arte o militar não aprendeu.
Por nove luas o sol da artilharia
Descia com seus raios sobre o vale
— À noite nossa prece ao Céu subia.
Quando o arraial de obuses foi coberto
Saí ao campo e um mar de baionetas
Eu enfrentei de peito descoberto.
E aqueles cuja face foi banhada
No branco olhar da morte viram a Vida
Da carne ainda aos ossos agarrada.
E foi descendo em nós treva profunda
Enquanto a cada dia novos corpos
Já carne aos brancos ossos não circunda.
Baixaram até o solo o meu povoado
E o Sacrário tão caro a nosso povo
Pelo inimigo foi despedaçado.
Soube o Brasil assim quanto eram fortes
Aqueles cujo sangue misturaram
Ao sangue dos irmãos, juntos na morte.
Sei que ganhei porque não fui vencido:
Nas minhas mãos a Cruz jamais tremeu
Ante a Espada feroz do inimigo
Do meu viver sempre haverá memória.
Lembro os algozes: dizem " Tiradentes!"
Sem exemplos seguir, de sua história
Aqui estou meu Deus com Vossa Lei
E com meu povo vivo eternamente,
Tomei-me um Mito e um mito
é mais que um Rei
Por isso estou aqui com minha gente.
CLODOALDO DE ALENCAR
ÊXTASE:
“Olhas-me, assim, tão dentro da retina,
com tanto afeto, com meiguice tanta
que o próprio coração se me quebranta
e a alma se eleva à placidez divina.
Que torpor indizível nos domina!
Quanta doçura nos teus olhos! Quanta!
As palavras sucumbem, na garganta,
Como gorjeios de aves em surdina...
O próprio vento, muito de mansinho,
para não perturbar nossa quietude,
oscula-te o cabelo em desalinho...
Sinto, então, meu amor, em tais instantes,
Que o mundo é belo em toda a plenitude,
no milagre dos olhos dos amantes!”
Do livro Orós, 1961
O VARREDOR DE RUA
A Hora morta da noite, à hora calada,
quando a cidade dorme, ei-lo varrendo
a rua, que se alonga, abandonada,
como uma enorme cobra se estendendo...
Varre, e, a cada morosa vassourada,
respira a poeira: tosse; e, assim sofrendo,
à proporção que lima a rua, nada
no pó do lixo e, aos poucos, vai morrendo.
Quando, às vezes, o encontro no trabalho,
limpando a via pública, tossindo,
morrendo assim para viver, presumo
que um homem vale tanto quanto valho,
— porque eu, que varro da alma um sonho findo,
na sua própria poeira me consumos...
De Archotes, 1933.
O DESTINO DOS CARDOS
A bateia do sol cessa o cascalho do ouro,
no afã paradoxal de empobrecer a terra.
A cobra para, a ave se assusta, o gado berra,
em face da exaustão do último bebedouro.
Tristonhos, braços no alto, à orla incolor da serra,
— soldados naturais da guarda de um tesouro —
velhos mandacarus como que fazem coro
ao suplicar a paz, destroçados na guerra.
Ao lado, a estrada-real, que se perde à distância,
desenrola o novelo infindável da leva
de sertanejos massacrados desde a infância...
Mas, os mandacarus, que são mais infelizes,
vão cumprindo — (que horror!) — que na luz, quer na treva,
a pena de prisão através das raízes...
Do livro Orós, 1961
COSME FERREIRA FILHO
RECOMPENSA
Minha glória maior, meu bem superno,
foi conduzir-te, ó minha noiva, pura!
Nem meu amor, misto de Céu e Averno,
violou do teu lábio a extrema usura.
Foste a virgem castíssima, em eterno
êxtase doloroso, ante esta obscura,
esta rude agonia em que me interno,
como em feroz e ríspida clausura.
Mas teu prêmio virá, em glória, em canto,
em festa, em luz doirando-te os caminhos,
que rorejaste com teu níveo pranto;
Pois teu noivar de trevas e amarguras
não imolou a seara dos caminhos
em lascivas colheitas prematuras!
DANIELL MAZZA
Os jasmins
Escolha do fado, estranho mistério:
Vicejou no recanto de meu jardim
Um jasmim, e brotou um outro jasmim
Sobre o funesto chão de um cemitério.
“Coitada de ti, flor pálida e infausta,
Tens por berço as covas... Não tens amigos!
Na triste companhia de jazigos,
Vives nessa terra pútrida e exausta!”
“Escuta: fica com o teu jardim
Pomposo para ti... Cada dia viceja
Onde prescreve a Providência, assim,
Amo esses solos sujos, solo pulcros,
Pois vivo neles, e nada há que que seja
Para mim mais belo que esses sepulcros!”
DIMAS CARVALHO ( Brasil – Ceará )
Poeta. Professor da UVA – Universidade do Vale do Acaraú e membro da Academia Sobralense de Estudos e Letras. (…) O grande poeta do Acaraú, Dimas Carvalho, nos brinda com mais um livro de sonetos, sua especialidade. Dimas é considerado hoje pela crítica especializada o maior poeta vivo do Ceará.
FRANCISCO CARVALHO ( 1927-2013 )
SONETO À RENDEIRA
O linho é uma oração remota, nesse
fluir fabril de fio para a flor.
Move-se o coração da moça, e esquece
o tempo prisioneiro, em derredor
da sombra esguia que à almofada tece.
Move-se, em seu afã modelador
de paz, o mito imemorial da prece
que do limbo da morte inventa o amor.
Movem-se dentro dela o sol e o vento.
Move-se o mar, e os pórticos se movem
das águas em perpétuo movimento...
Move-se a gênese em seu corpo jovem.
E, enquanto o olhar medita, os dedos tecem
gestos de amor que os lábios não conhecem.
SONETO A CAPITU Oh! flor do céu! Oh! flor cândida e pura! Desce do olimpo à terra prometida. Quando eu remava a barca da loucura, tu pisavas meu versos, distraída. Tua nudez é o mito que se cala para escutar os olhos de quem ama. Falo à serpente, mas a minha fala entre em teu corpo e nele se derrama. Não dês ouvido às súplicas dos bardos, ó pastora do vento e suas crias. Podes mata-los com teus negros dardos. Do amor se diz que é o fio da navalha. Ao vendaval dos sonhos e dos dias, perde-se a vida, ganha-se a batalha.
FRANCISCO DE PAULA NEI
Francisco de Paula Ney (Aracati, 2 de fevereiro de 1858 — Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1897) foi um poeta, jornalista que marcou o boêmio Rio de Janeiro da belle époque. Era amigo de Aluízio Azevedo e Olavo Bilac.
SONETO
[dedicado a FORTALEZA, Ceará, Brasil]
Ao longe, em brancas praias embalada Pelas ondas azuis dos verdes mares, A Fortaleza, a loura desposada Do sol, dormita à sombra dos palmares.
Loura de sol e branca de luares, Como uma hóstia de luz cristalizada, Entre verbenas e jardins pousada Na brancura de místicos altares.
Lá canta em cada ramo um passarinho, Há pipilos de amor em cada ninho, Na solidão dos verdes matagais…
É minha terra! A terra de Iracema, O decantado e esplêndido poema De alegria e beleza universais!
A ABOLIÇÃO
A justiça de um povo generoso,
Pesando sobre a negra escravidão,
Esmagou-a de um modo glorioso,
Sufocando-a com a lei da Abolição.
Esse passado tétrico, horroroso,
Da mais nefanda e torpe instituição,
Rolou no chão, no abismo pavoroso,
Assombrado com a luz da Redenção.
Não mais dos homens os fatais horrores,
Não mais o vil zumbir das vergastadas,
Salpicando de sangue o chão e as flores.
Não mais escravos pelas esplanadas!
São todos livres! Não há mais senhores!
Foi-se a noite: só temos alvoradas!
SEM TÍTULO Aquele piano, que ontem soluçava, Triste e dolente, a doce cavatina Dos teus olhos, oh! lânguida bonina, Parecia uma órfã que chorava… Parecia uma nuvem que espalhava A branda luz da estrela matutina; Parecia uma pomba que arrulhava Na orla verde-negra da campina. E eu chorava também… Tinha em meu peito A dor da ausência, o perenal martírio Dum grande amor passado e já desfeito! Então, pedia às brisas que corriam, Puras e leves, como o odor do lírio, Para falar-te; e as brisas me fugiam…
A TRANÇA Esta santa relíquia imaculada, De teu saudoso amor, esta lembrança, Da vida que fugiu, arrebatada, Ligeira, como um sonho de criança, Nos sonos de uma noite de bonança… - Eu guardo, junto a mim, oh! noiva amada, Enquanto minha vista não se cansa De vê-la e adorá-la, extasiada! Com o fio desta trança, tão escura, Tão negra, sim - que até minha amargura Lhe invejaria a cor - e tão macia… Quais pétalas de rosa, eu teço, à noite, Da viração sentindo o brando açoite, - O epitáfio de minha campa fria!…
DE VIAGEM Voa minh’alma, voa pelos ares, Como o trapo de nuvem flutuante, Vai perdida, sozinha e soluçante, Distende as asas tuas sobre os mares! Leva contigo os lânguidos cismares, Que um dia acalentaste, delirante, Como acalenta o vento roçagante, A copa verde-negra dos palmares. Atira tudo isso aos pés de Deus, Lá onde brilha a luz e estão os céus E virgens mil c’roadas de verbena. Isto que já brilhou como uma estrela, _ Adeus! dirás, só pertenceu a ela, Corpo de um anjo, coração de hiena!
ADORAÇÃO Tu és minha, afinal! Enfim, te vejo Sobre os meus braços, lânguida, prostrada, Enquanto em tua face, descorada, Os lábios colo e sorvo-te num beijo. Vibra em minh’alma o lúbrico desejo, De assim gozar-te a sós, abandonada, De sentir o que sentes, minha amada, De escutar-te do peito o doce arpejo! Quando, entretanto, eu sinto que teu seio Palpita delirante em doido anseio, Como a luz que do sol à terra emana, Eu digo dentro em mim: se eu te manchara, Se eu te manchara, Flor, ai! não te amara, Oh! branca espuma da beleza humana!
FRANCISCO LEITE SERRA AZUL
OS RADIADOS
Lá nas profundidades dos Oceanos, seres radiados e fosforescentes têm como única luz nesses arcanos os fogos de seus corpos imanentes.
São reservas do Sol que, há milhões de anos, a Natureza em mágicas correntes, por instinto ou desígnios soberanos, secreta aos microscópicos viventes.
Assim também desperto ou adormeço no oceano da ignorância de usurários que vedam a justiça que encareço...
E embora sem auxílios peregrinos, viva o projetar luz como os radiários nesses profundos vales submarinos.
EXORTAÇÃO A JOÃO HENRIQUE
Não mintas nunca, filho, que a mentira é um vício mau que degenera tudo... Eu já sou velho, e, embora me pretira, quando ignoro a verdade, fico mudo!
No verdadeiro amor teu estro inspira; da Razão e da Fé faz teu escudo: A prática do Bem tendo como mira, e, do Progresso, a Ciência por escudo.
Dá pelo bem de todos quanto valha teu esforço no fogo das pelejas: produz, vive, ama, ri, canta e trabalha;
que enquanto o que é trivial me desilude, meu único desejo é que tu sejas o que eu quisera ser, porém não pude!
NO DECLÍNIO ...
No ano mil novecentos e cinquenta, cinquenta e sete anos temos nós, querida; somos da mesma idade, e, em nossa lida, cada vez mais o amor em nós aumenta.
Se olhamos para a estrada percorrida no passado, uma luz nos aviventa, e nos leva, a sorrir, aos sessenta, setenta, oitenta ou mais anos de vida!
E haveremos de chegar, assim, velhinhos, percorrendo as escarpas tenebrosas da vida, no mais suave dos caminhos,
colhendo nela as messes venturosas: pois se encontramos pela vida espinhos, por entre espinhos, apanhamos rosas!
AURORA ( Antiga venda )
À margem do Salgado instalou venda De comida e bebida Dona Aurora Que servia de oásis, rancho e tenda Ao viajante, acolhendo-o a qualquer hora.
Era a ribeira que sulcava a senda Do litoral ao Cariri, outrora Vem depois da uma igreja, uma vivenda. Outra e mais outra e em povoação se enflora.
Não sei se o mais é tradição ou lenda. Sei que foi vila e que é cidade agora. E a sua história é trágica e tremenda!
É a terra do meu berço, esta que, embora Tivesse o nome mercantil de venda, Tem hoje o nome fúlgido de Aurora.