Tem coragem de apertar o botão?
Tem coragem de apertar o botão?
Texto publicado na revista kraken n. 8 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)
Imaginemos um vírus modificado da peste bubônica, ultrarresistente aos antibióticos - existe, está na imprensa -, que num mês liquidasse com 80% da raça humana. Logicamente, os sobreviventes cairiam de cabeça numa nova Idade da Pedra, e passariam milênios antes que se recriasse uma civilização similar à atual - refiro-me ao seu grau de tecnologia.
Imaginemos que um grupo de arqueólogos, dentro de uns dois milênios, encontrassem você, querido leitor, transformado em “fóssil”, com as oito revistinhas da série Kraken milagrosamente conservadas entre os restos de seu esqueleto.
Imaginemos que é a primeira vez que os arqueólogos encontram, em perfeito estado de conservação, uma obra gráfico-literária dos antigos - ou seja, nós. É de se supor que poriam seus melhores cérebros a trabalhar na tradução, e mais cedo ou mais tarde, poderiam lê-la e entende-la em toda sua extensão.
Se eles, nossos descendentes, conseguiram criar um mundo melhor, uma civilização realmente humana na meIhor acepção da palavra, baseada na igualdade, na liberdade e na fraternidade; se desconhecessem sentimentos como a violência, o ódio, a guerra, imaginem vocês, queridos leitores, o terror, a angústia e o espanto que a leitura do Kraken Ihes produziria. Imaginem as milhares de horas de estudos sisudos que dedicariam na tentativa de descobrir se o Kraken é uma obra de ficção ou, na verdade, retrata fielmente, em todas as suas nuances, nossa civilização (?) desaparecida.
Imaginemos que, no fim, decidam que o Kraken é uma história realista e que, portanto, os políticos corruptos, os ladrões, os gigolos, os assassinos sádicos, os criminosos com distintivo, os fanáticos religiosos, os traficantes de drogas, os marginalizados… … e o resto da fauna humana descrita em suas páginas existiram na realidade. Que a cidade de Metropol e a sociedade descrita nela foram reais, que o Kraken e os krakeneiros se enfrentaram em seus esgotos.
Não precisa muita imaginação para chegar à conclusão que renegariam nossa memória. Suspirariam aliviados ao pensar que a peste bubônica lhes fez um grande favor ao ter nossa civilização (?) e dar a grande oportunidade de começarem de novo. Penso, inclusive, que queimariam as revistinhas do Kraken para que não houvessem memórias de nossas “façanhas” e proibiriam taxativamente a arqueologia, tanto pelo temor de encontrar novos livros quanto pelo temor de topar com Metropol e despertar o Kraken.
Porra, na certa queimariam as revistinhas do Kraken. Conside ro isso uma injustiça. No final das contas, apenas tentei refletir em seus roteiros a parte obscura de nossa sociedade, e francamente, não sei se consegui. E quanto ao trabalho de Jordi Bernet - cada uma das vinhetas desenhadas com seu estilo genial e mágico -, considero uma aberração que possa desaparecer por ter me acompanhado em minha “loucura”.
Por isso, para salvar estas revistinhas, proponho a vocês um experimento. Ao pé desta página verão desenhado um círculo preto, um “botão". Proponho que vocês o apertem durante uns segundos, com a máxima concentração, rogando para que, ao terminar, os corruptos, os filhos da puta, os violentos, os milhares de ambiciosos sem consciência que nos envenenam a vida tenham desaparecido de nosso planeta. Se isso acontecesse, salvariam a obra de Jordi Bernet e deste roteirista. O Kraken seria então apenas um pequeno e tímido mostruário dos monstros humanos com que um dia compartilhamos este mundo que não nos merece.
Tem coragem de apertar o botão?