A sangue-frio... com sangue quente
A sangue-frio… com sangue quente
Texto publicado na revista Kraken n. 3 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)
O genial romancista Truman Capote é autor de um romance intitulado A sangue frio - leitura imprescindível para os amantes do gênero noir , que se tornou um filme com o mesmo nome, dirigido por Richard Brooks nos anos cinquenta.
Romance e filme contam a sangrenta história de dois bandidos pés de chinelo, dois amadores que planejam roubar uma pequena fazenda no Meio Oeste americano. A coisa se complica e eles decidem acabar a sangue-frio com todos os membros da família que vivem na casa. Posteriormente, os dois criminosos são presos, julgados e executados com o mesmo sangue-frio com que eles assassinaram suas vítimas. De alguma forma, Truman Capote, um opositor radical à pena de morte, adverte você que os assassinos e a Justiça são ramos da mesma árvore, que é tão terrível a matança realizada pelos dois bandidos quanto seu justiçamento nas mãos da lei.
Eram sempre divertidas, em filmes “ingênuos” e “bem intencionados” dos anos 40/50, as sequências que narravam como o bom, empunhando uma pistola, apontava com ela para o mau de turno. Em vez de liquidá-lo a sangue-frio, decidia lhe contar tim-tim por tim-tim o labiríntico processo dedutivo que havia levado a descobrir que ele era o impiedoso esquartejador assassino das doze crianças do orfanato. Situação sempre aproveitada pelo mau para saltar sobre o bom e desarmá-lo, o que dava a chance de os dois trocarem um sortido repertório de golpes e permitir in extremis que o bom enfim fulminasse o mau com um justiceiro disparo a sangue quente, em clara defesa própria. O sangue quente desculpava quase tudo.
No cinema atual, pela mão de diretores como Martin Scorsese ou Tarantino, os bons e os maus se diluem: só existem seres de moral cinzenta, que atiram primeiro, repetidamente, e depois, como única reflexão, cospem sobre o rosto de sua vítima. Com eles chegamos ao realismo dentro da ficção, a uma mistura igualitária de sangue frio e de sangue quente, a fórmula perfeita para um fim de século imperfeito, no qual a violência é um prato quotidiano e repetitivo.
Quando escrevi minha própria história intitulada “A sangue-frio”, tinha fresco na memória o romance/filme de Truman Capote misturado com os sangrentos fatos protagonizados pelo ETA(1) - estive em Barcelona no mesmo dia em que explodiu a bomba no Hipercor - e decidi “brincar” com a possibilidade de que, ao sangue frio do assassino, opusesse-se com a mesma brutal e decidida determinação o sangue frio da Justiça. Sem saber, estava adiantando-me à nova “filosofia” da violência, cujo sumo sacerdote máximo é Tarantino; sem saber, estava dando as costas ao humano, compreensível, acessível, sangue quente serviu de desculpa para tantos crimes.
A próxima história, intitulada “Até a vista, amigo”, veio-nos por encomenda. Leopoldo Sánchez, chefão da revista, Metropol, sugeriu a Jordi Bernet e a mim história que contássemos tivesse o rádio como que coadjuvante. Naqueles anos, o rádio estava ganhando a batalha contra a tevê, demonstrando uma independência política e uma agilidade informativa que superavam a manipulada tevê.
Escrevi meu roteiro, e sem me dar conta, de uma droga pesada, a informação, passei para outra droga pesada: a heroína. As duas, a informação e a heroína, têm os mesmos efeitos nocivo para a saúde, ambas aniquilam parte da nossa humanidade. A informação porque faz cair diariamente sobre nossa consciências a percepção de que este nosso mundo é tudo, menos perfeito. A é heroína porque é o atalho para escapar da realidade e acabar na negra não existência.
Como anedota, direi que, para além da história, o que agradou a muitos fãs da série foi o primeiro quadro da página 7 [pag. 65 deste livro]. Nela se vê claramente um subfuzil em punhado por um dos personagens; pois bem, espantaram-se de que, entre tanta ficção - a informação e a droga -, Jordi Bernet tivesse chegado numa realidade tão estrita como desenhar em seus mínimos detalhes um subfuzil S.M.G.U.Z.I. 9 mm fabricado em Israel. É que não sabem que Jordi Bernet torna crível o incrível e se documenta pacientemente para isso.
Um tempo depois, folheando um catálogo de armas descobri que o S.M.G.U.Z.I. é quase gêmeo do Star Z-84, fabricado na Espanha, uma arma fornecida aos Corpos e Forças de Segurança, e esse detalhe me confirmou que a informação (distorcida e manipulada) e a droga são armas quase gêmeas.
(1) ETA - Euskadi Ta Askatasuna (em basco: Pátria Basca e Liberdade) foi uma organização nacionalista armada, fundada em 1959, que lutava pela independência do País Basco. Em 1987, o grupo fez um atentado a bomba em uma sede da loja Hipercor, matando 21 pessoas.