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Ouro sujo... e eterno

Texto publicado na revista Kraken n. 7 ( Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Imagino que a essas alturas, vocês, queridos leitores, já leram a história intitulada "Ouro sujo", embora eu desconheça se chegaram à mesma conclusão, ao mesmo raciocinio que impulsionou este humilde roteirista a escreve-la. Quis contar o seguinte: quando para pagar sua ração diária de "pico", um canalha ataca nossas mães/ esposas/ filhas/ irmās/ amigas e lhes arrebata com violência a pequena corrente de ouro que envolve seu pescoço, ou o anel herdado da vovó, está se pondo em marcha um ciclo infernal que acompanhou desde sempre a trajetória da raça humana.

Vamos aos detalhes: o canalha visitará um joalheiro velhaco e desalmado que irá comprar dele, a baixo preço, a joia roubada. O joalheiro, geralmente um pequeno-burgues abonado, um pilar da sociedade, um baluarte da honra e da decência, que constantemente se queixa do elevado índice de delinquência, da insegurança urbana que nos rodeia, fundirá o ouro que foi comprado dos junkies e recriará algu mas joias novas que porá à venda com um lucro excelente.

Paradoxalmente, pode haver a circunstância de que você entre na joalheria e compre uma corrente de ouro para substituir a que roubaram de sua esposa faz alguns dias, sem saber que esta foi feita como mesmo ouro fundido da outra.

O ciclo continua. O ouro nunca desaparece, transforma-se.

Odeio o ouro - considero-o uma maldição de que dificilmente poderemos nos libertar. O papel moeda de todos os países deste mundo está respaldado pelas reservas de ouro de seus bancos nacionais. Anular o ouro, rejeitá-lo, repudiá-lo, devolvê-lo às entranhas da terra seria o mesmo que afundar o sistema mundial e nos instalar no caos. No entanto, não há um grama de ouro que seja inocente, que não esteja manchado de sangue e violência.

O ouro que recobre o relógio que você mostra tão orgulhoso a seus amigos talvez seja parte do mesmo ouro pelo qual Hernán Cortés arrasou toda uma civilização; ou o ouro que levou Jeremias Houdd a assassinar seus dois irmãos, horas depois de tê-lo extraído de uma montanha na Califórnia; ou o ouro que antes foi um dente, arranca do da dentadura de um judeu exterminado num campo de concentração nazista; ou o ouro fruto do saque e da aniquilação de todos os habitantes da cidade de Segunto pelas mãos de Aníbal.

Frederic Olson, filósofo norueguês especializado no assunto, no acompanhamento da herança maldita do ouro, chegou à conclusão de que, no transcurso da história humana, cada quilo do precioso metal significou/ provocou a morte de quinhentas mil pessoas. Cada grama de ouro tem por trás uma biografia de guerras, matanças, assassinatos, injustiça.

Acredite em mim, estimado leitor: quando você oferece à sua amada uma joia de ouro, ou a primeira pulseira à sua filha, está fazendo a elas um desfavor ao pôr em contato com suas inocentes carnes um metal maldito, carregado de vibrações negativas. O mesmo metal com que alguma vez se fabricou o rosto de um deus sangrento, sempre sedento de sacrifícios humanos; o mesmo metal que desde sempre foi propriedade dos tiranos, dos conquistadores sem consciência, dos agiotas e banqueiros que tanta dor e miséria provocaram.

Eu garanto, se a aliança de ouro que lhe cinge o dedo pudesse falar, contar para você sua longa biografia, você ficaria aterrorizado.

Convencido de tê-los convencido, levado por minha natural generosidade, ofereço-me como depositário de todas as suas joias. Vamos, livrem-se da maldição que significa sua posse, mandem-me todo o seu ouro, por mais sujo que seja, que eu o carregarei, eu farei o sacrifício de ser seu proprietário. E que Deus me perdoe por isso.

Tem coragem de apertar o botão?

Texto publicado na revista kraken n. 8 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Imaginemos um vírus modificado da peste bubônica, ultrarresistente aos antibióticos - existe, está na imprensa -, que num mês liquidasse com 80% da raça humana. Logicamente, os sobreviventes cairiam de cabeça numa nova Idade da Pedra, e passariam milênios antes que se recriasse uma civilização similar à atual - refiro-me ao seu grau de tecnologia.

Imaginemos que um grupo de arqueólogos, dentro de uns dois milênios, encontrassem você, querido leitor, transformado em "fóssil", com as oito revistinhas da série Kraken milagrosamente conservadas entre os restos de seu esqueleto.

Imaginemos que é a primeira vez que os arqueólogos encontram, em perfeito estado de conservação, uma obra gráfico-literária dos antigos - ou seja, nós. É de se supor que poriam seus melhores cérebros a trabalhar na tradução, e mais cedo ou mais tarde, poderiam lê-la e entende-la em toda sua extensão.

Se eles, nossos descendentes, conseguiram criar um mundo melhor, uma civilização realmente humana na meIhor acepção da palavra, baseada na igualdade, na liberdade e na fraternidade; se desconhecessem sentimentos como a violência, o ódio, a guerra, imaginem vocês, queridos leitores, o terror, a angústia e o espanto que a leitura do Kraken Ihes produziria. Imaginem as milhares de horas de estudos sisudos que dedicariam na tentativa de descobrir se o Kraken é uma obra de ficção ou, na verdade, retrata fielmente, em todas as suas nuances, nossa civilização (?) desaparecida.

Imaginemos que, no fim, decidam que o Kraken é uma história realista e que, portanto, os políticos corruptos, os ladrões, os gigolos, os assassinos sádicos, os criminosos com distintivo, os fanáticos religiosos, os traficantes de drogas, os marginalizados... ... e o resto da fauna humana descrita em suas páginas existiram na realidade. Que a cidade de Metropol e a sociedade descrita nela foram reais, que o Kraken e os krakeneiros se enfrentaram em seus esgotos.

Não precisa muita imaginação para chegar à conclusão que renegariam nossa memória. Suspirariam aliviados ao pensar que a peste bubônica lhes fez um grande favor ao ter nossa civilização (?) e dar a grande oportunidade de começarem de novo. Penso, inclusive, que queimariam as revistinhas do Kraken para que não houvessem memórias de nossas "façanhas" e proibiriam taxativamente a arqueologia, tanto pelo temor de encontrar novos livros quanto pelo temor de topar com Metropol e despertar o Kraken.

Porra, na certa queimariam as revistinhas do Kraken. Conside ro isso uma injustiça. No final das contas, apenas tentei refletir em seus roteiros a parte obscura de nossa sociedade, e francamente, não sei se consegui. E quanto ao trabalho de Jordi Bernet - cada uma das vinhetas desenhadas com seu estilo genial e mágico -, considero uma aberração que possa desaparecer por ter me acompanhado em minha "loucura".

Por isso, para salvar estas revistinhas, proponho a vocês um experimento. Ao pé desta página verão desenhado um círculo preto, um “botão". Proponho que vocês o apertem durante uns segundos, com a máxima concentração, rogando para que, ao terminar, os corruptos, os filhos da puta, os violentos, os milhares de ambiciosos sem consciência que nos envenenam a vida tenham desaparecido de nosso planeta. Se isso acontecesse, salvariam a obra de Jordi Bernet e deste roteirista. O Kraken seria então apenas um pequeno e tímido mostruário dos monstros humanos com que um dia compartilhamos este mundo que não nos merece.

Tem coragem de apertar o botão?