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MEU QUERIDO MONSTRO

Texto publicado na revista Kraken n 1 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Você le os jornais diários? Pelo menos vê os telejornais? Se sim, estou certo de que deve pensar que a raça humana está enlouquecida. Todos nós estamos. Somos uma espécie de monstro global que insiste em demonstrar sua loucura extrema e sangrenta com a mesma paradoxal intensidade com que defendemos nossa condição de seres civilizados.

A guerra que houve na antiga lugoslavia nos demonstrou que ainda somos capazes de estuprar, assassinar e massacrar sem que nossa alma pestaneje. Os hutus e os tutsis se degolam mutuamente com a mesma brutal competência com que os integristas(1) argelinos fazem o mesmo com suas mulheres e crianças. Na civilizada Bélgica, foi descoberta uma rede de sadicos pedófilos assassinos de crianças, e talvez por inveja, na Alemanha foi detido um casal que oferecia crianças de 10 a 14 anos para torturas sexuais e práticas sadomasoquistas pelo módico preço de um milhão de pesetas(2), com um acréscimo de 230 mil pesetas para se desfazer dos cadáveres em caso de os clientes exagerarem em "suas inocentes brincadeiras". E o mais pavoroso de tudo isto é que ofereciam seus serviços pela rede de transmissão de dados da companhia telefónica alemã Telekom. E nem falemos de sequestros e do posterior "retalhe" de crianças do terceiro mundo para abastecer o mercado de órgãos.

Depois deste exame da realidade cotidiana, qualquer tentativa que eu fizesse neste prefácio para convencê-los de que a leitura das façanhas do Kraken vai deixá-los com os cabelos em pé seria simplesmente patética. O que posso lhes dizer é que o Kraken, o ente patologico assassino criado por Jordi Bernet e este roteirista, o monstro infra-humano que mora nos labirinticos esgotos da cidade de Metropol, nos milhares de quilômetros de seus pestilentos e lôbregos subterrâneos, é tão decididamente assassino porque, durante anos, esteve absorvendo toda a nossa maldade, alimentando cada uma de suas células com as emanações de nossa psicologia criminosa. É, em resumo, um monstro criado à nossa imagem e semelhança, é isso que o torna tão terrível.

O Kraken vive empapado em nossos excrementos físicos e morais, chapinha em nosso lixo, saboreia os restos humanos que, de quando em quando, caem em seu reino de sombras saídos de um anônimo escoadouro. Ele nos vigia e nos espera porque descobriu que somos um delicioso pedaço de merda, e seu apetite é insaciável.

Bem-vindos a Metropol, alter ego de todas as nossas cidades. Desçam com a gente até seus esgotos e conheçam o Kraken. Descam acompanhando o tenente Dante dos Krakeneiros, desçam ao inferno e conheçam seus moradores - são o que temos de melhorzinho em nossa sociedade.

(1) Partido integrista Frente Muçulmana de Salvação (FMS).

(2) Antiga moeda da Espanha, anterior ao euro.

O Poder Gosta dos esgotos

Texto publicado na revista Kraken n. 5 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

As vezes me pergunto, realmente a sério, se não terei uma veia de profeta, ou quem sabe fosse melhor dizer, de visionário. Vejamos: em relação à história intitulada "Querido embaixador", a escrita partiu do fato básico de que sempre tenho um sorriso bobo ao notar que a luta contra as drogas se empenha principalmente na perseguição e captura dos multiempregados aviões, na desarticulação de modestas redes familiares ou, em último caso, na captura de um carregamento de certa importância. A droga move centenas de milhares de milhões, e para montar qualquer operação de alguma envergadura, necessita, em principio, conhecer o mercado, ter contatos, possuir uma infraestrutura de transporte em nível internacional e - o que é mais importante - contar com um capital inicial de algumas centenas de milhões para comprar a droga. E aqui vem a grande pergunta: quem tem esses imprescindíveis milhões iniciais? Resposta: os que têm milhões normalmente são os milionários, que querem ser ainda mais ricos investindo no lucrativo mundo das drogas.

E isto é história: os insaciáveis comerciantes ingleses de meados do século XIX descobriram que a China era um mercado potencial para o consumo de ópio (uma substância que só se consumia com fins terapêuticos), e durante o período que se conhece como A Guerra do Ópio, os navios ingleses contrabandearam para a China centenas de toneladas de ópio, criando tamanho índice de dependência que os historiadores do tema consideram que, sem dúvida, proporcionou o declínio do país até levá-lo à borda da miséria. E como última sacanagem, quando as autoridades chinesas tentaram fechar seus portos aos navios estrangeiros que introduziam a droga em seu país, os exércitos inglês e francês assaltaram e tomaram pela força das armas os ditos portos para garantir que o grande negócio não fosse interrompido. Em suma, o primeiro cartel no tráfico de drogas em grande escala foi formado pelos capitalistas e leais súditos de sua graciosa majestade, a rainha Vitória.

Este roteirista narrou ingenuamente sua própria história "elucubrando" que o poder, os políticos e os queridos embaixadores têm muito a ver com a cúpula da droga. E o tempo me deu razão: o general Noriega, do Panamá, traficava drogas, e o irmão de Salinas, presidente do México, dedica va-se à mesma sórdida atividade. Com o tempo, esta lista se tornará infinita. O poder gosta dos esgotos, se suas entranhas gerarem ouro.

Insistindo em minha aparente capacidade profética, também me aproximei, por meio da ficção, à mais pura e dura realidade quando escrevi o roteiro da história intitulada "Cemitério S.A.".

Naquele tempo, andava muito encucado em relação à moral. Havia tido o prazer de conhecer pessoalmente um dos meus ídolos, dom Alberto Breccia, que generosamente iluminou com um desenho um dos meus álbuns preferidos, nascido de sua imensa genialidade: Os Mitos de Cthulhu. Abusando de dom Alberto, pus em suas mãos outro álbum, Mort Cinder, e lhe pedi que o levasse com ele para a Argentina e me devolvesse quando pudesse com uma dedicatória do meu admirado roteirista Héctor Oesterheld. Dom Alberto, depois de me olhar com maior das tristezas durante alguns instantes, sussurrou-me: "Então você não sabe? Héctor é um dos desaparecidos".

Vocês já sabem que desaparecido, na recente história da Argentina, significa que uns homens vêm atrás de você e o sequestram com a maior das impunidades, e passando por cima de todas as leis humanas e divinas, decidem sobre sua vida. E a vida é tudo.

Aquela notícia - de tão brutal, injusta, irracional - ficou gravada em minha mente. Héctor jamais teria um túmulo onde deixar flores em sua memória. Seus assassinos o tinham privado até da única dignidade que acompanha a morte.

Tinha que escrever um roteiro para Jordi Bernet, e Héctor estava em minha cabeça, como também estavam as notícias que o jornal El País vinha publicando sobre as "façanhas" de um grupo denominado GAL.(1) E de tudo isso nasceu a pergunta: onde poderiam estar os cemitérios do poder? Onde os "bons meninos" enterravam os "maus meninos"? Então decidi que o faziam nos esgotos, porque o poder adora os esgotos, tão próximos de nós e tão distantes, tão reais e tão invisíveis, até que alguém bate em sua porta ou a derruba e informa que você já é um desaparecido.

Agora o GAL é notícia de primeira página.

E aqui um pequeno segredo. Se alguma vez Jordi me dissesse "Quero Lhe dar um desenho, Escolha", eu escolheria a página cinco [pag. 106 deste livro] de "Cemitério S.A." Dediquem uns minutos a estudá-la, e quando nos vermos, poderemos nos divertir comentando-a... É simplesmente um decálogo de sete quadros sobre a boa arte.

(1) O GAL (Grupo de Antiterroristas de Libertação) foram agrupações armadas que praticaram o chamado terrorismo de Estado ou "guerra suja" contra o grupo terrorista ETA, na década de 1980, na Espanha. Tiveram apoio de altos funcionários públicos do Ministério do Interior durante o governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Embora dissessem combater o ETA, em várias ocasiões atacaram simplesmente militantes da esquerda independentista basca e ecologista.