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De possessões e exorcismos

Texto publicado na revista Kraken n. 4 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Se você acredita, querido leitor, que não é possesso, é um ingênuo. Todos nós somos, embora alguns sejam mais conscientes disso que outros. Vamos aos exemplos.

Jesus de Nazaré, durante sua andança evangélica, conheceu um possesso, um endemoniado, a quem salvou com um exorcismo que o libertou das garras do diabo. Entidade nefasta, o Anjo Caído, antítese do bem com quem Jesus teve um contato direto, cara a cara, Satanás lhe ofereceu a posse do mundo caso renunciasse ao Pai Eterno. Jesus declinou da oferta e deixou evidente a existência do Senhor do Mal, e que este, pelo jeito, é o proprietário exclusivo da "bolinha do mundo" e de tudo o que ele contém, incluindo você, um empregado e Naomi Campbell

Todos nascemos possuídos pelo Mal, e é graças ao Sacramento do Batismo - um exorcismo em regra - que renunciamos às suas pompas e às suas obras, ficando livres por ora de seu domínio.

Se alguém espirra em público, rapidamente se diz a ele "Jesus"(1), ao que o pré-gripado responde "Obrigado". O que talvez você não saiba é que está realizando um pequeno exorcismo - desde épocas remotas já se acreditava que, quando alguém espirrava, estava expulsando o demônio que o possuía.

Como veem, a possessão é aceita desde o início da religião judaico-cristã, e o exorcismo sobrevive em nossos atos mais cotidianos.

Dentro da imensa gama de possessões a que estamos todos submetidos, destacam-se os chamados loucos. Os loucos, tão difamados, na realidade são espíritos ultrassensíveis que percebem claramente outro ser coabitando em seu próprio eu, e é claro, diante desta duplicidade, não levam a vida muito a sério. O melhor exemplo seria um sujeito que fosse torcedor fanático do Barça e do Real Madrid ao mesmo tempo, o que é a mesma coisa que dizer uma loucura total. Os loucos veem, dizem e experimentam outra realidade, a realidade verdadeira, e a Liga dos Campeões não o distraem dela.

Os psicopatas, os assassinos em série, repetem sempre a mesma cantilena quando são capturados: sua personalidade é dupla, e uma delas lhe fala, domina-o e lhe exige que periodicamente estripe algum semelhante. Na realidade, estão manifestando que a possessão tem seu preço.

Loucos é psicopatas compartilham pelo menos a "virtude" de conhecer sua verdadeira condição de possessos, o que não os espanta nem os repele; nós, o resto dos mortais, vivemos muito pior. Ao não assumir que junto à nossa "alma" cavalga outra entidade, nossos neurônios entram em curto quando o melhor amigo nos apunhala, ou quando descobrimos que nossa mulher é infiel, ou que os políticos se empenham em fazer deste mundo um inferno, ou que um homem, aparentemente inofensivo, assassinou a tiros vinte crianças num colégio inglês ou que nosso jogador preferido assinou com o time adversário.

Sejamos realistas. Já com um pé dentro do próximo milênio, instruídos por séries como Arquivo-X e Millenium, em vez de nos surpreendermos porque um grupo de yuppies se suicida para viajar na cauda de um cometa em busca de melhores horizontes, em vez de ficarmos paralisados diante das constantes manifestações do mal que nos rodeia, aceitemos antes de mais nada que tudo se deve ao fato de estarmos possuídos pelo próprio mal e iniciarmos em seguida uma cruzada de exorcismos. Compre um manual e exorcize sua cunhada, seu vizinho, seu chefe, a todo cristo que estiver por perto, e suporte com resignação quando exorcizarem você. Se o plano funcionar, eu garanto, este mundo voltará a ser um paraíso. Como único favor pelas "revelações" anteriores, rogo a vocês nem pensarem em exorcizar o Kraken. Ele é o mal em estado puro, não tem duplicidade, não está possuído pelo bem e está muito feliz em sua condição.

Mães más, tiras piores

Texto publicado na revista Kraken n. 6 ( Ed. Glenat, Espanha, 1997 )

A raça humana é um pouco como o Rato: suporta tudo, ou quase tudo. O Rato vocês já conhecem, apareceu no número quatro desta coleção como coadjuvante de uma história intitulada justamente "Ratos" [pag. 83 deste livro], em que mostrou como é durão, como está preparado para sobreviver numa socieda tão endiabradamente agressiva como a nossa. Na história intitulada "Amor de mãe", o Rato insiste em nos demonstrar que é osso duro de roer, que andar pela vida meio amputado não o afeta de jeito nenhum - e nisso é igual a mim e a vocês. Todos nós perdemos, no transcurso disto que chamamos de vida, parte de nossa anatomia ética: perdemos parte de nosso idealismo, de nossa generosidade, da capacidade de encarnar o Bem de forma natural. Como o Rato, nós também somos enrabados uma infinidade de vezes, se não anatomicamente, moralmente. Fomos violados pelo chefe prepotente, pelo sargento embrutecido, pelas leis injustas emanadas do poder político - e aguentamos tudo, como o Rato.

No que nos diferenciamos do Rato, no que somos piores que ele, é que vocês e eu temos mães como Deus manda, mas isso não representou nenhuma vantagem. Eu, particularmente, no lugar de minha mãe, que me educou para ser um bom cidadão, e portanto perfeitamente triturável, adoraria ter tido uma mãe como a do Rato: de aparência tímida, recatada, tão encantadora e levando na sacola de compras um revólver com seis balas com que liquidou "não lembro muito bem quantos safados. Sabe como é... minha memória já não é a mesma". Estou totalmente convencido de que se nossas respectivas mães em vez de nos educar como cidadãos modelos, de nos fazer tomar a primeira comunhão vestidos de marinheirinhos, de impedir que comêssemos nossa prima Mari Carmen (que não esperava outra coisa) e de nos obrigar a devolver aquela carteira cheia de notas que encontramos na escada e que era do vizinho do quinto andar, tivessem nos educado na convicção de que esta nossa sociedade é uma pura porcaria, em que só os grandes canalhas riem todos os dias, o mundo funcionaria muito melhor. Em vez de haver tanta gente boa de que as pessoas más se aproveitam, seriamos todos uns verdadeiros filhos da puta, uns assassinos morais de comer o fígado de nossas próprias mães. Então, como o senhor Roldán (1) iria se atrever a se conceder um salário duplo às custas do contribuinte ou o senhor Conde (2) a arrasar um banco? Como o político de turno ia nos prometer o céu em plena terra enquanto saqueja com seus impostos nossa parca economia doméstica ou como o sindicalista ia decidir que defende nossos interesses enquanto olha para outro lado para não ver como o sistema furta dia após dia nossa futura e imperfeita aposentadoria? Sim, senhores, com mães como a do Rato, essas coisas não aconteceriam. Os citados anteriormente teriam tanto medo de nós, tanto respeito, que não se atreveriam a arriscar a pele. Mas como somos bons, porra, aproveitam-se da gente - e isso me irrita pra caramba.

Deixo de lhes falar de mães más, que talvez sejam boas, para comentar a outra história desta revista, intitulada "O meIhor policial da cidade”, a recriação de um mau policial, ou a lembrança de como um excelente filme mudou minha vida. Eu era um menino quando, num cinema de bairro, vi, pela primei ra vez, um filme fabuloso e desestabilizador. Refiro-me ao A Marca da Maldade, dirigido e interpretado por Orson Welles.

O senhor Welles encarnava um velho policial, um sabujo de faro infalível para o crime. O senhor Welles, apesar de ser a antítese física do herói a que eu estava acostumado, com sua gordura desmedida, seus charutos fedorentos, sua roupa cheia de manchas, sua barba crescida, seu mau caráter e seu alcoolismo avançado, cativou com sua personalidade forte meu espírito impressionável. Porra, era como meu avô - meu avô sempre sabia o que fazer; eu tinha aprendido a confiar cegamente nele -, e além do mais, aquele cidadão era um policial. Na certa que descobria o assassino antes do outro policial, o que era jovem e bonito, mas um tanto bobalhão.

Quando o filme acabou, o balão tinha murchado. O diabo era que aquele policial que me lembrava meu avô, pelo visto fraudava as provas para meter em cana pessoas inocentes. A decepção foi enorme. Acabava de conhecer o primeiro tira mau da minha vida - e isso marca. Tanto que agora, que sou adulto, decidi escrever um roteiro de Kraken no qual o Orson de A Marca da Maldade continuava fazendo das suas, perpetuando a história que hoje sei que é correta: que nem sempre a Lei e a Justiça são como meu avô, gente honrada em que se pode confiar de olhos fechados, e que a Justiça tem uma venda tapando os seus, coisa que sempre achei esquisita.

(1) Luis Roldán Ibáñez (Espanha, 1943) é um ex-politico do partido PSOE, envolvido em um escândalo de corrupção quando era diretor da Guarda Civil espanhola. Foi condenado a 31 anos de cadeia, em 1995.

(2) Mario Antonio Conde (Espanha, 1948), jurista, empresário e político, condenado a 20 anos de prisão pelos crimes de fraude e apropriação indébita no caso no banco espanhol Banesto.