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2020

Tem coragem de apertar o botão?

Texto publicado na revista kraken n. 8 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Imaginemos um vírus modificado da peste bubônica, ultrarresistente aos antibióticos - existe, está na imprensa -, que num mês liquidasse com 80% da raça humana. Logicamente, os sobreviventes cairiam de cabeça numa nova Idade da Pedra, e passariam milênios antes que se recriasse uma civilização similar à atual - refiro-me ao seu grau de tecnologia.

Imaginemos que um grupo de arqueólogos, dentro de uns dois milênios, encontrassem você, querido leitor, transformado em "fóssil", com as oito revistinhas da série Kraken milagrosamente conservadas entre os restos de seu esqueleto.

Imaginemos que é a primeira vez que os arqueólogos encontram, em perfeito estado de conservação, uma obra gráfico-literária dos antigos - ou seja, nós. É de se supor que poriam seus melhores cérebros a trabalhar na tradução, e mais cedo ou mais tarde, poderiam lê-la e entende-la em toda sua extensão.

Se eles, nossos descendentes, conseguiram criar um mundo melhor, uma civilização realmente humana na meIhor acepção da palavra, baseada na igualdade, na liberdade e na fraternidade; se desconhecessem sentimentos como a violência, o ódio, a guerra, imaginem vocês, queridos leitores, o terror, a angústia e o espanto que a leitura do Kraken Ihes produziria. Imaginem as milhares de horas de estudos sisudos que dedicariam na tentativa de descobrir se o Kraken é uma obra de ficção ou, na verdade, retrata fielmente, em todas as suas nuances, nossa civilização (?) desaparecida.

Imaginemos que, no fim, decidam que o Kraken é uma história realista e que, portanto, os políticos corruptos, os ladrões, os gigolos, os assassinos sádicos, os criminosos com distintivo, os fanáticos religiosos, os traficantes de drogas, os marginalizados... ... e o resto da fauna humana descrita em suas páginas existiram na realidade. Que a cidade de Metropol e a sociedade descrita nela foram reais, que o Kraken e os krakeneiros se enfrentaram em seus esgotos.

Não precisa muita imaginação para chegar à conclusão que renegariam nossa memória. Suspirariam aliviados ao pensar que a peste bubônica lhes fez um grande favor ao ter nossa civilização (?) e dar a grande oportunidade de começarem de novo. Penso, inclusive, que queimariam as revistinhas do Kraken para que não houvessem memórias de nossas "façanhas" e proibiriam taxativamente a arqueologia, tanto pelo temor de encontrar novos livros quanto pelo temor de topar com Metropol e despertar o Kraken.

Porra, na certa queimariam as revistinhas do Kraken. Conside ro isso uma injustiça. No final das contas, apenas tentei refletir em seus roteiros a parte obscura de nossa sociedade, e francamente, não sei se consegui. E quanto ao trabalho de Jordi Bernet - cada uma das vinhetas desenhadas com seu estilo genial e mágico -, considero uma aberração que possa desaparecer por ter me acompanhado em minha "loucura".

Por isso, para salvar estas revistinhas, proponho a vocês um experimento. Ao pé desta página verão desenhado um círculo preto, um “botão". Proponho que vocês o apertem durante uns segundos, com a máxima concentração, rogando para que, ao terminar, os corruptos, os filhos da puta, os violentos, os milhares de ambiciosos sem consciência que nos envenenam a vida tenham desaparecido de nosso planeta. Se isso acontecesse, salvariam a obra de Jordi Bernet e deste roteirista. O Kraken seria então apenas um pequeno e tímido mostruário dos monstros humanos com que um dia compartilhamos este mundo que não nos merece.

Tem coragem de apertar o botão?

Um novo método para escrever roteiros

Texto publicado na revista Kraken n. 2 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Aquele artigo jornalístico relatava como se havia localizado, na Papua-Nova Guiné, um oficial japonês que, durante 39 longos anos, havia sobrevivido na mais absoluta solidão numa selva intrincada, assassina, convencido de que a guerra entre os Aliados e as Potências do Eixo ainda continuava. Escondido, faminto, enlouquecido, temendo se encontrar com uma patrulha de marines comandada pelo próprio John Wayne, imagino que satisfazia suas necessidades sexuais com muita imaginação ou alguma macaca pró-nipônica. O oficial japonês e a história surreal que protagonizou ficaram registrados em minha memória como o exemplo perfeito do idealismo radical ou da fé cega numa causa. Ou era simples fanatismo?

Outra notícia que chamou minha atenção também era surrealista. A pedido do Clube de Roma, havia acontecido, em Dacca, capital de Bangladesh, uma série de encontros entre associações europeias pró-aborto e pró-vida. Tentava-se chegar a um acordo, estabelecer algumas regras do jogo. O que na realidade aconteceu foi que as duas tendências, perdendo as estribeiras, iniciaram uma cruenta batalha campal que terminou com vários feridos. O que me interessou na notícia não foi a capacidade de sair na mão dos defensores das melhores causas. Isso é coisa cotidiana. O que realmente chamou minha atenção foi que aborteiros e antiaborteiros tivessem aceitado Bangladesh como local para decidir se a vida deve ou não ser respeitada. Qualquer um de vocês, queridos leitores, que tenha estado em Bangladesh, saberá, lembrará, que não é difícil encontrar dois, três, seis cadáveres de diferentes idades e sexos na mais curta excursão. No fim, a gente prefere pensar que não estão mortos, que estão adormecidos apenas, curtindo uma longa sesta. E não é que as crianças, com seus ossos desenhados sob a pele apergaminhada, estejam consumidas pela fome, são apenas magras por natureza. Acredito que se os párias de Bangladesh soubessem que os pró-vida e os pró-aborto estavam em seu país discutindo assunto tão profundo... teriam morrido de rir.

Por que conto tudo isso a vocês? Conto porque, quando comecei a escrever os roteiros de Kraken, decidi, já que tratavam de histórias sociais, noirs, de denúncia - ou pelo menos era essa minha intenção inicial -, em vez de recorrer à imaginação, que me limitaria a ler a imprensa diária, escolheria uma notícia e, a partir dela, criaria meu roteiro.

As histórias "Operação isca gelada" e "Brincadeira de meninas" nasceram nesse contexto.

Na primeira, "sonhei" que os fanáticos de qualquer tendência política, país, causa ou exército, os vencidos incapazes de aceitar sua derrota, os grandes idealistas, talvez talvez não escolhessem, como o japonês da selva da Papua-Nova Guiné, esperar por sua hipotética revanche. Talvez, no futuro, desçam às vísceras de nossas cidades e vagem por nossos esgotos e túneis sonhando que sua causa não está perdida, que a luta continua e que, como todo guerreiro, merecem o descanso da carne, o prazer do sexo, mesmo que este esteja francamente gelado, visceralmente morto, combinando com seus ideais.

A outra história, “Brincadeira de meninas”, narra como, durante muitos anos, os abortos clandestinos também entravam seu lar e refúgio nos esgotos. Fetos disformes conviviam lado a lado com os velhos revolucionários, igualmente privados de existência. Ambos, fetos e velhos revolucionários, foram e são vítimas do sistema. Aos primeiros, durante anos se roubou uma lei racional, digna - o sistema os condenou à clandestinidade, driblou uma realidade social. Aos segundos, a televisão, futebol, o automóvel, a preguiça para romper as correntes, a falsa prosperidade de um segundo histórico os deixou sozinhos.

Do que foi dito, do que vocês leram e do que vão ler a seguir se desprende uma reflexão, quase um grito de guerra: NÃO DEIXE QUE A REVOLUÇÃO ACABE NOS ESGOTOS!