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2020

O Poder Gosta dos esgotos

Texto publicado na revista Kraken n. 5 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

As vezes me pergunto, realmente a sério, se não terei uma veia de profeta, ou quem sabe fosse melhor dizer, de visionário. Vejamos: em relação à história intitulada "Querido embaixador", a escrita partiu do fato básico de que sempre tenho um sorriso bobo ao notar que a luta contra as drogas se empenha principalmente na perseguição e captura dos multiempregados aviões, na desarticulação de modestas redes familiares ou, em último caso, na captura de um carregamento de certa importância. A droga move centenas de milhares de milhões, e para montar qualquer operação de alguma envergadura, necessita, em principio, conhecer o mercado, ter contatos, possuir uma infraestrutura de transporte em nível internacional e - o que é mais importante - contar com um capital inicial de algumas centenas de milhões para comprar a droga. E aqui vem a grande pergunta: quem tem esses imprescindíveis milhões iniciais? Resposta: os que têm milhões normalmente são os milionários, que querem ser ainda mais ricos investindo no lucrativo mundo das drogas.

E isto é história: os insaciáveis comerciantes ingleses de meados do século XIX descobriram que a China era um mercado potencial para o consumo de ópio (uma substância que só se consumia com fins terapêuticos), e durante o período que se conhece como A Guerra do Ópio, os navios ingleses contrabandearam para a China centenas de toneladas de ópio, criando tamanho índice de dependência que os historiadores do tema consideram que, sem dúvida, proporcionou o declínio do país até levá-lo à borda da miséria. E como última sacanagem, quando as autoridades chinesas tentaram fechar seus portos aos navios estrangeiros que introduziam a droga em seu país, os exércitos inglês e francês assaltaram e tomaram pela força das armas os ditos portos para garantir que o grande negócio não fosse interrompido. Em suma, o primeiro cartel no tráfico de drogas em grande escala foi formado pelos capitalistas e leais súditos de sua graciosa majestade, a rainha Vitória.

Este roteirista narrou ingenuamente sua própria história "elucubrando" que o poder, os políticos e os queridos embaixadores têm muito a ver com a cúpula da droga. E o tempo me deu razão: o general Noriega, do Panamá, traficava drogas, e o irmão de Salinas, presidente do México, dedica va-se à mesma sórdida atividade. Com o tempo, esta lista se tornará infinita. O poder gosta dos esgotos, se suas entranhas gerarem ouro.

Insistindo em minha aparente capacidade profética, também me aproximei, por meio da ficção, à mais pura e dura realidade quando escrevi o roteiro da história intitulada "Cemitério S.A.".

Naquele tempo, andava muito encucado em relação à moral. Havia tido o prazer de conhecer pessoalmente um dos meus ídolos, dom Alberto Breccia, que generosamente iluminou com um desenho um dos meus álbuns preferidos, nascido de sua imensa genialidade: Os Mitos de Cthulhu. Abusando de dom Alberto, pus em suas mãos outro álbum, Mort Cinder, e lhe pedi que o levasse com ele para a Argentina e me devolvesse quando pudesse com uma dedicatória do meu admirado roteirista Héctor Oesterheld. Dom Alberto, depois de me olhar com maior das tristezas durante alguns instantes, sussurrou-me: "Então você não sabe? Héctor é um dos desaparecidos".

Vocês já sabem que desaparecido, na recente história da Argentina, significa que uns homens vêm atrás de você e o sequestram com a maior das impunidades, e passando por cima de todas as leis humanas e divinas, decidem sobre sua vida. E a vida é tudo.

Aquela notícia - de tão brutal, injusta, irracional - ficou gravada em minha mente. Héctor jamais teria um túmulo onde deixar flores em sua memória. Seus assassinos o tinham privado até da única dignidade que acompanha a morte.

Tinha que escrever um roteiro para Jordi Bernet, e Héctor estava em minha cabeça, como também estavam as notícias que o jornal El País vinha publicando sobre as "façanhas" de um grupo denominado GAL.(1) E de tudo isso nasceu a pergunta: onde poderiam estar os cemitérios do poder? Onde os "bons meninos" enterravam os "maus meninos"? Então decidi que o faziam nos esgotos, porque o poder adora os esgotos, tão próximos de nós e tão distantes, tão reais e tão invisíveis, até que alguém bate em sua porta ou a derruba e informa que você já é um desaparecido.

Agora o GAL é notícia de primeira página.

E aqui um pequeno segredo. Se alguma vez Jordi me dissesse "Quero Lhe dar um desenho, Escolha", eu escolheria a página cinco [pag. 106 deste livro] de "Cemitério S.A." Dediquem uns minutos a estudá-la, e quando nos vermos, poderemos nos divertir comentando-a... É simplesmente um decálogo de sete quadros sobre a boa arte.

(1) O GAL (Grupo de Antiterroristas de Libertação) foram agrupações armadas que praticaram o chamado terrorismo de Estado ou "guerra suja" contra o grupo terrorista ETA, na década de 1980, na Espanha. Tiveram apoio de altos funcionários públicos do Ministério do Interior durante o governo do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Embora dissessem combater o ETA, em várias ocasiões atacaram simplesmente militantes da esquerda independentista basca e ecologista.

Ouro sujo... e eterno

Texto publicado na revista Kraken n. 7 ( Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Imagino que a essas alturas, vocês, queridos leitores, já leram a história intitulada "Ouro sujo", embora eu desconheça se chegaram à mesma conclusão, ao mesmo raciocinio que impulsionou este humilde roteirista a escreve-la. Quis contar o seguinte: quando para pagar sua ração diária de "pico", um canalha ataca nossas mães/ esposas/ filhas/ irmās/ amigas e lhes arrebata com violência a pequena corrente de ouro que envolve seu pescoço, ou o anel herdado da vovó, está se pondo em marcha um ciclo infernal que acompanhou desde sempre a trajetória da raça humana.

Vamos aos detalhes: o canalha visitará um joalheiro velhaco e desalmado que irá comprar dele, a baixo preço, a joia roubada. O joalheiro, geralmente um pequeno-burgues abonado, um pilar da sociedade, um baluarte da honra e da decência, que constantemente se queixa do elevado índice de delinquência, da insegurança urbana que nos rodeia, fundirá o ouro que foi comprado dos junkies e recriará algu mas joias novas que porá à venda com um lucro excelente.

Paradoxalmente, pode haver a circunstância de que você entre na joalheria e compre uma corrente de ouro para substituir a que roubaram de sua esposa faz alguns dias, sem saber que esta foi feita como mesmo ouro fundido da outra.

O ciclo continua. O ouro nunca desaparece, transforma-se.

Odeio o ouro - considero-o uma maldição de que dificilmente poderemos nos libertar. O papel moeda de todos os países deste mundo está respaldado pelas reservas de ouro de seus bancos nacionais. Anular o ouro, rejeitá-lo, repudiá-lo, devolvê-lo às entranhas da terra seria o mesmo que afundar o sistema mundial e nos instalar no caos. No entanto, não há um grama de ouro que seja inocente, que não esteja manchado de sangue e violência.

O ouro que recobre o relógio que você mostra tão orgulhoso a seus amigos talvez seja parte do mesmo ouro pelo qual Hernán Cortés arrasou toda uma civilização; ou o ouro que levou Jeremias Houdd a assassinar seus dois irmãos, horas depois de tê-lo extraído de uma montanha na Califórnia; ou o ouro que antes foi um dente, arranca do da dentadura de um judeu exterminado num campo de concentração nazista; ou o ouro fruto do saque e da aniquilação de todos os habitantes da cidade de Segunto pelas mãos de Aníbal.

Frederic Olson, filósofo norueguês especializado no assunto, no acompanhamento da herança maldita do ouro, chegou à conclusão de que, no transcurso da história humana, cada quilo do precioso metal significou/ provocou a morte de quinhentas mil pessoas. Cada grama de ouro tem por trás uma biografia de guerras, matanças, assassinatos, injustiça.

Acredite em mim, estimado leitor: quando você oferece à sua amada uma joia de ouro, ou a primeira pulseira à sua filha, está fazendo a elas um desfavor ao pôr em contato com suas inocentes carnes um metal maldito, carregado de vibrações negativas. O mesmo metal com que alguma vez se fabricou o rosto de um deus sangrento, sempre sedento de sacrifícios humanos; o mesmo metal que desde sempre foi propriedade dos tiranos, dos conquistadores sem consciência, dos agiotas e banqueiros que tanta dor e miséria provocaram.

Eu garanto, se a aliança de ouro que lhe cinge o dedo pudesse falar, contar para você sua longa biografia, você ficaria aterrorizado.

Convencido de tê-los convencido, levado por minha natural generosidade, ofereço-me como depositário de todas as suas joias. Vamos, livrem-se da maldição que significa sua posse, mandem-me todo o seu ouro, por mais sujo que seja, que eu o carregarei, eu farei o sacrifício de ser seu proprietário. E que Deus me perdoe por isso.