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2020

Mães más, tiras piores

Texto publicado na revista Kraken n. 6 ( Ed. Glenat, Espanha, 1997 )

A raça humana é um pouco como o Rato: suporta tudo, ou quase tudo. O Rato vocês já conhecem, apareceu no número quatro desta coleção como coadjuvante de uma história intitulada justamente "Ratos" [pag. 83 deste livro], em que mostrou como é durão, como está preparado para sobreviver numa socieda tão endiabradamente agressiva como a nossa. Na história intitulada "Amor de mãe", o Rato insiste em nos demonstrar que é osso duro de roer, que andar pela vida meio amputado não o afeta de jeito nenhum - e nisso é igual a mim e a vocês. Todos nós perdemos, no transcurso disto que chamamos de vida, parte de nossa anatomia ética: perdemos parte de nosso idealismo, de nossa generosidade, da capacidade de encarnar o Bem de forma natural. Como o Rato, nós também somos enrabados uma infinidade de vezes, se não anatomicamente, moralmente. Fomos violados pelo chefe prepotente, pelo sargento embrutecido, pelas leis injustas emanadas do poder político - e aguentamos tudo, como o Rato.

No que nos diferenciamos do Rato, no que somos piores que ele, é que vocês e eu temos mães como Deus manda, mas isso não representou nenhuma vantagem. Eu, particularmente, no lugar de minha mãe, que me educou para ser um bom cidadão, e portanto perfeitamente triturável, adoraria ter tido uma mãe como a do Rato: de aparência tímida, recatada, tão encantadora e levando na sacola de compras um revólver com seis balas com que liquidou "não lembro muito bem quantos safados. Sabe como é... minha memória já não é a mesma". Estou totalmente convencido de que se nossas respectivas mães em vez de nos educar como cidadãos modelos, de nos fazer tomar a primeira comunhão vestidos de marinheirinhos, de impedir que comêssemos nossa prima Mari Carmen (que não esperava outra coisa) e de nos obrigar a devolver aquela carteira cheia de notas que encontramos na escada e que era do vizinho do quinto andar, tivessem nos educado na convicção de que esta nossa sociedade é uma pura porcaria, em que só os grandes canalhas riem todos os dias, o mundo funcionaria muito melhor. Em vez de haver tanta gente boa de que as pessoas más se aproveitam, seriamos todos uns verdadeiros filhos da puta, uns assassinos morais de comer o fígado de nossas próprias mães. Então, como o senhor Roldán (1) iria se atrever a se conceder um salário duplo às custas do contribuinte ou o senhor Conde (2) a arrasar um banco? Como o político de turno ia nos prometer o céu em plena terra enquanto saqueja com seus impostos nossa parca economia doméstica ou como o sindicalista ia decidir que defende nossos interesses enquanto olha para outro lado para não ver como o sistema furta dia após dia nossa futura e imperfeita aposentadoria? Sim, senhores, com mães como a do Rato, essas coisas não aconteceriam. Os citados anteriormente teriam tanto medo de nós, tanto respeito, que não se atreveriam a arriscar a pele. Mas como somos bons, porra, aproveitam-se da gente - e isso me irrita pra caramba.

Deixo de lhes falar de mães más, que talvez sejam boas, para comentar a outra história desta revista, intitulada "O meIhor policial da cidade”, a recriação de um mau policial, ou a lembrança de como um excelente filme mudou minha vida. Eu era um menino quando, num cinema de bairro, vi, pela primei ra vez, um filme fabuloso e desestabilizador. Refiro-me ao A Marca da Maldade, dirigido e interpretado por Orson Welles.

O senhor Welles encarnava um velho policial, um sabujo de faro infalível para o crime. O senhor Welles, apesar de ser a antítese física do herói a que eu estava acostumado, com sua gordura desmedida, seus charutos fedorentos, sua roupa cheia de manchas, sua barba crescida, seu mau caráter e seu alcoolismo avançado, cativou com sua personalidade forte meu espírito impressionável. Porra, era como meu avô - meu avô sempre sabia o que fazer; eu tinha aprendido a confiar cegamente nele -, e além do mais, aquele cidadão era um policial. Na certa que descobria o assassino antes do outro policial, o que era jovem e bonito, mas um tanto bobalhão.

Quando o filme acabou, o balão tinha murchado. O diabo era que aquele policial que me lembrava meu avô, pelo visto fraudava as provas para meter em cana pessoas inocentes. A decepção foi enorme. Acabava de conhecer o primeiro tira mau da minha vida - e isso marca. Tanto que agora, que sou adulto, decidi escrever um roteiro de Kraken no qual o Orson de A Marca da Maldade continuava fazendo das suas, perpetuando a história que hoje sei que é correta: que nem sempre a Lei e a Justiça são como meu avô, gente honrada em que se pode confiar de olhos fechados, e que a Justiça tem uma venda tapando os seus, coisa que sempre achei esquisita.

(1) Luis Roldán Ibáñez (Espanha, 1943) é um ex-politico do partido PSOE, envolvido em um escândalo de corrupção quando era diretor da Guarda Civil espanhola. Foi condenado a 31 anos de cadeia, em 1995.

(2) Mario Antonio Conde (Espanha, 1948), jurista, empresário e político, condenado a 20 anos de prisão pelos crimes de fraude e apropriação indébita no caso no banco espanhol Banesto.

MEU QUERIDO MONSTRO

Texto publicado na revista Kraken n 1 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Você le os jornais diários? Pelo menos vê os telejornais? Se sim, estou certo de que deve pensar que a raça humana está enlouquecida. Todos nós estamos. Somos uma espécie de monstro global que insiste em demonstrar sua loucura extrema e sangrenta com a mesma paradoxal intensidade com que defendemos nossa condição de seres civilizados.

A guerra que houve na antiga lugoslavia nos demonstrou que ainda somos capazes de estuprar, assassinar e massacrar sem que nossa alma pestaneje. Os hutus e os tutsis se degolam mutuamente com a mesma brutal competência com que os integristas(1) argelinos fazem o mesmo com suas mulheres e crianças. Na civilizada Bélgica, foi descoberta uma rede de sadicos pedófilos assassinos de crianças, e talvez por inveja, na Alemanha foi detido um casal que oferecia crianças de 10 a 14 anos para torturas sexuais e práticas sadomasoquistas pelo módico preço de um milhão de pesetas(2), com um acréscimo de 230 mil pesetas para se desfazer dos cadáveres em caso de os clientes exagerarem em "suas inocentes brincadeiras". E o mais pavoroso de tudo isto é que ofereciam seus serviços pela rede de transmissão de dados da companhia telefónica alemã Telekom. E nem falemos de sequestros e do posterior "retalhe" de crianças do terceiro mundo para abastecer o mercado de órgãos.

Depois deste exame da realidade cotidiana, qualquer tentativa que eu fizesse neste prefácio para convencê-los de que a leitura das façanhas do Kraken vai deixá-los com os cabelos em pé seria simplesmente patética. O que posso lhes dizer é que o Kraken, o ente patologico assassino criado por Jordi Bernet e este roteirista, o monstro infra-humano que mora nos labirinticos esgotos da cidade de Metropol, nos milhares de quilômetros de seus pestilentos e lôbregos subterrâneos, é tão decididamente assassino porque, durante anos, esteve absorvendo toda a nossa maldade, alimentando cada uma de suas células com as emanações de nossa psicologia criminosa. É, em resumo, um monstro criado à nossa imagem e semelhança, é isso que o torna tão terrível.

O Kraken vive empapado em nossos excrementos físicos e morais, chapinha em nosso lixo, saboreia os restos humanos que, de quando em quando, caem em seu reino de sombras saídos de um anônimo escoadouro. Ele nos vigia e nos espera porque descobriu que somos um delicioso pedaço de merda, e seu apetite é insaciável.

Bem-vindos a Metropol, alter ego de todas as nossas cidades. Desçam com a gente até seus esgotos e conheçam o Kraken. Descam acompanhando o tenente Dante dos Krakeneiros, desçam ao inferno e conheçam seus moradores - são o que temos de melhorzinho em nossa sociedade.

(1) Partido integrista Frente Muçulmana de Salvação (FMS).

(2) Antiga moeda da Espanha, anterior ao euro.