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2020

A sangue-frio... com sangue quente

Texto publicado na revista Kraken n. 3 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

O genial romancista Truman Capote é autor de um romance intitulado A sangue frio - leitura imprescindível para os amantes do gênero noir , que se tornou um filme com o mesmo nome, dirigido por Richard Brooks nos anos cinquenta.

Romance e filme contam a sangrenta história de dois bandidos pés de chinelo, dois amadores que planejam roubar uma pequena fazenda no Meio Oeste americano. A coisa se complica e eles decidem acabar a sangue-frio com todos os membros da família que vivem na casa. Posteriormente, os dois criminosos são presos, julgados e executados com o mesmo sangue-frio com que eles assassinaram suas vítimas. De alguma forma, Truman Capote, um opositor radical à pena de morte, adverte você que os assassinos e a Justiça são ramos da mesma árvore, que é tão terrível a matança realizada pelos dois bandidos quanto seu justiçamento nas mãos da lei.

Eram sempre divertidas, em filmes "ingênuos" e "bem intencionados" dos anos 40/50, as sequências que narravam como o bom, empunhando uma pistola, apontava com ela para o mau de turno. Em vez de liquidá-lo a sangue-frio, decidia lhe contar tim-tim por tim-tim o labiríntico processo dedutivo que havia levado a descobrir que ele era o impiedoso esquartejador assassino das doze crianças do orfanato. Situação sempre aproveitada pelo mau para saltar sobre o bom e desarmá-lo, o que dava a chance de os dois trocarem um sortido repertório de golpes e permitir in extremis que o bom enfim fulminasse o mau com um justiceiro disparo a sangue quente, em clara defesa própria. O sangue quente desculpava quase tudo.

No cinema atual, pela mão de diretores como Martin Scorsese ou Tarantino, os bons e os maus se diluem: só existem seres de moral cinzenta, que atiram primeiro, repetidamente, e depois, como única reflexão, cospem sobre o rosto de sua vítima. Com eles chegamos ao realismo dentro da ficção, a uma mistura igualitária de sangue frio e de sangue quente, a fórmula perfeita para um fim de século imperfeito, no qual a violência é um prato quotidiano e repetitivo.

Quando escrevi minha própria história intitulada "A sangue-frio", tinha fresco na memória o romance/filme de Truman Capote misturado com os sangrentos fatos protagonizados pelo ETA(1) - estive em Barcelona no mesmo dia em que explodiu a bomba no Hipercor - e decidi "brincar" com a possibilidade de que, ao sangue frio do assassino, opusesse-se com a mesma brutal e decidida determinação o sangue frio da Justiça. Sem saber, estava adiantando-me à nova "filosofia" da violência, cujo sumo sacerdote máximo é Tarantino; sem saber, estava dando as costas ao humano, compreensível, acessível, sangue quente serviu de desculpa para tantos crimes.

A próxima história, intitulada "Até a vista, amigo", veio-nos por encomenda. Leopoldo Sánchez, chefão da revista, Metropol, sugeriu a Jordi Bernet e a mim história que contássemos tivesse o rádio como que coadjuvante. Naqueles anos, o rádio estava ganhando a batalha contra a tevê, demonstrando uma independência política e uma agilidade informativa que superavam a manipulada tevê.

Escrevi meu roteiro, e sem me dar conta, de uma droga pesada, a informação, passei para outra droga pesada: a heroína. As duas, a informação e a heroína, têm os mesmos efeitos nocivo para a saúde, ambas aniquilam parte da nossa humanidade. A informação porque faz cair diariamente sobre nossa consciências a percepção de que este nosso mundo é tudo, menos perfeito. A é heroína porque é o atalho para escapar da realidade e acabar na negra não existência.

Como anedota, direi que, para além da história, o que agradou a muitos fãs da série foi o primeiro quadro da página 7 [pag. 65 deste livro]. Nela se vê claramente um subfuzil em punhado por um dos personagens; pois bem, espantaram-se de que, entre tanta ficção - a informação e a droga -, Jordi Bernet tivesse chegado numa realidade tão estrita como desenhar em seus mínimos detalhes um subfuzil S.M.G.U.Z.I. 9 mm fabricado em Israel. É que não sabem que Jordi Bernet torna crível o incrível e se documenta pacientemente para isso.

Um tempo depois, folheando um catálogo de armas descobri que o S.M.G.U.Z.I. é quase gêmeo do Star Z-84, fabricado na Espanha, uma arma fornecida aos Corpos e Forças de Segurança, e esse detalhe me confirmou que a informação (distorcida e manipulada) e a droga são armas quase gêmeas.

(1) ETA - Euskadi Ta Askatasuna (em basco: Pátria Basca e Liberdade) foi uma organização nacionalista armada, fundada em 1959, que lutava pela independência do País Basco. Em 1987, o grupo fez um atentado a bomba em uma sede da loja Hipercor, matando 21 pessoas.

De possessões e exorcismos

Texto publicado na revista Kraken n. 4 (Ed. Glénat, Espanha, 1997)

Se você acredita, querido leitor, que não é possesso, é um ingênuo. Todos nós somos, embora alguns sejam mais conscientes disso que outros. Vamos aos exemplos.

Jesus de Nazaré, durante sua andança evangélica, conheceu um possesso, um endemoniado, a quem salvou com um exorcismo que o libertou das garras do diabo. Entidade nefasta, o Anjo Caído, antítese do bem com quem Jesus teve um contato direto, cara a cara, Satanás lhe ofereceu a posse do mundo caso renunciasse ao Pai Eterno. Jesus declinou da oferta e deixou evidente a existência do Senhor do Mal, e que este, pelo jeito, é o proprietário exclusivo da "bolinha do mundo" e de tudo o que ele contém, incluindo você, um empregado e Naomi Campbell

Todos nascemos possuídos pelo Mal, e é graças ao Sacramento do Batismo - um exorcismo em regra - que renunciamos às suas pompas e às suas obras, ficando livres por ora de seu domínio.

Se alguém espirra em público, rapidamente se diz a ele "Jesus"(1), ao que o pré-gripado responde "Obrigado". O que talvez você não saiba é que está realizando um pequeno exorcismo - desde épocas remotas já se acreditava que, quando alguém espirrava, estava expulsando o demônio que o possuía.

Como veem, a possessão é aceita desde o início da religião judaico-cristã, e o exorcismo sobrevive em nossos atos mais cotidianos.

Dentro da imensa gama de possessões a que estamos todos submetidos, destacam-se os chamados loucos. Os loucos, tão difamados, na realidade são espíritos ultrassensíveis que percebem claramente outro ser coabitando em seu próprio eu, e é claro, diante desta duplicidade, não levam a vida muito a sério. O melhor exemplo seria um sujeito que fosse torcedor fanático do Barça e do Real Madrid ao mesmo tempo, o que é a mesma coisa que dizer uma loucura total. Os loucos veem, dizem e experimentam outra realidade, a realidade verdadeira, e a Liga dos Campeões não o distraem dela.

Os psicopatas, os assassinos em série, repetem sempre a mesma cantilena quando são capturados: sua personalidade é dupla, e uma delas lhe fala, domina-o e lhe exige que periodicamente estripe algum semelhante. Na realidade, estão manifestando que a possessão tem seu preço.

Loucos é psicopatas compartilham pelo menos a "virtude" de conhecer sua verdadeira condição de possessos, o que não os espanta nem os repele; nós, o resto dos mortais, vivemos muito pior. Ao não assumir que junto à nossa "alma" cavalga outra entidade, nossos neurônios entram em curto quando o melhor amigo nos apunhala, ou quando descobrimos que nossa mulher é infiel, ou que os políticos se empenham em fazer deste mundo um inferno, ou que um homem, aparentemente inofensivo, assassinou a tiros vinte crianças num colégio inglês ou que nosso jogador preferido assinou com o time adversário.

Sejamos realistas. Já com um pé dentro do próximo milênio, instruídos por séries como Arquivo-X e Millenium, em vez de nos surpreendermos porque um grupo de yuppies se suicida para viajar na cauda de um cometa em busca de melhores horizontes, em vez de ficarmos paralisados diante das constantes manifestações do mal que nos rodeia, aceitemos antes de mais nada que tudo se deve ao fato de estarmos possuídos pelo próprio mal e iniciarmos em seguida uma cruzada de exorcismos. Compre um manual e exorcize sua cunhada, seu vizinho, seu chefe, a todo cristo que estiver por perto, e suporte com resignação quando exorcizarem você. Se o plano funcionar, eu garanto, este mundo voltará a ser um paraíso. Como único favor pelas "revelações" anteriores, rogo a vocês nem pensarem em exorcizar o Kraken. Ele é o mal em estado puro, não tem duplicidade, não está possuído pelo bem e está muito feliz em sua condição.