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1958

1958 Fastos do Ceará

Este texto foi originalmente publicado na Revista Instituto do Ceará.

QUIXERAMOBIM

BOANERGES FACÓ

QUIXERAMOBIM: Freguesia a 15 de novembro de 1755, sob a invocação de Santo Antônio de Lisboa ou Pádua de Quixeramobim; município a 13 de junho (dia de Santo Antônio) de 1789 com a denominação de Vila Nova do Campo Maior de Quixeramobim; comarca a 6 de maio de 1833 com a mesma denominação de Campo Maior de Qui- xeramobim e a 14 de agosto de 1856, ainda comarca, mas com a simples denominação de Quixeramobim, com a elevação à categoria de cidade.

Quixeramobim é o centro do Ceará, é o alto sertão, pois fica equi- distante da zona litorânea como o fica da fertilíssima região do Cariri. Não lhe chamo o coração do Ceará, porque a comparação já está muito trivial. Ademais, o Ceará, que constitui um todo harmônico e indivisí- vel, o Ceará árido ou ameno, faminto ou abundante, triste ou alegre, êle todo se acomoda dentro em o coração de cada cearense: seja o vaqueiro ou o jangadeiro, seja o rurícola ou o urbanista, seja o intelectual ou o rústico.

O seu povoamento, à semelhança do que se passou com a histórica Mesopotâmia, cresceu e subiu através de seus rios, seja o Jaguaribe e seus afluentes, seja o Acarau e seus tributários, ou qualquer outro de seu território. O povoamento subia e, à medida que galgava a en- costa do Ceará, situava fazendas que prosperaram e enriqueceram os seus donos que, abastados e rústicos, organizaram a nobreza rural.

O sertão povoou-se, o sertão enriqueceu-se, o sertão opulentou-se. De 1826 a 1876, durante 50 anos, com uma única sêca de permeio (1845), que não teve os efeitos calamitosos da sêca grande da última década do XVIII século e nem as conseqüências desastrosas da de 25, agravadas pelo estrangulamento da liberdade, o sertão encheu-se de gado vacum, cavalar e de outras espécies, dando fôrça e prestígio a seus proprietários que, à maneira dos senhores feudals da média idade, se guerreavam e se destruíam, numa luta titânica, heróica e san- grenta. Estão aí Montes e Feitosas, João André e Cavalcantes, Maciéis e Araújos, Patacas e José Leão e outros potentados, que amealharam grandes fortunas.

No meio dêsses violentos e perversos, uns por índole, à semelhança de Adrets que gozava a Sua sesta, ordenando que os prisioneiros de guerra se precipitassem do alto da tôrre de seu castelo à ponta das armas de seus soldados; outros, simples produto do meio inculto e da época recuada em que viviam, surgiram figuras sua- ves e bondosas como a de José Lopes Barreira. Este, possuindo vastas terras, desde o alto Sitiá até as praias do Aquiraz, se manteve manso e benfazejo, simples e caridoso, que, às vezes, por mera vaidade, de- pois de longas viagens declarava: "Graças a Deus que só andei em terras minhas".


A história eclesiástica de Quixeramobim vem, circunstanciada e exaustivamente, estudada no interessante trabalho de Ismael Pordeus "Antônio Dias Ferreira e a Matriz de Quixeramobim", em 60 artigos sucessivos, em "O Nordeste", trabalho, cuja leitura impressionou a Gustavo Barroso, que escreveu: "A Igreja que criou uma cidade". (Revista "O Cruzeiro", de 30 de junho de 1956).

Os dois mais destacados beneméritos dessa grandiosa obra de amor e fé cristã, na mais central das cidades de nosso querido Ceará, foram o capitão luso Antônio Dias Ferreira e Monsenhor Salviano Pinto Brandão, que não tiveram a ventura, o primeiro, de ver a ca- pelinha do Boqueirão elevada à categoria de Matriz a 15 de novembro de 1755 e nem, o segundo, a conclusão da última reforma por que pas- sou o templo, por uma questão de ano, que nada vale na seqüência dos séculos, mas que muito vale na passageira vida terrena do homem. Mas tiveram a felicidade, assim como os demais benfeitores do velho templo, de contar com Ismael Pordeus, "o documentado e probo his- toriador", para nos dizer o que se passou durante dois séculos, ali.

O Capitão Antônio Dias Ferreira, o fundador de Quixeramobim, comprou no ano de 1702 terras à margem do rio que os primitivos habitantes denominavam de Ibu e nelas situou a fazenda Boqueirão. Ali, decorridos 28 anos, Antônio Dias impetrou mercê para levantar uma capela na Fazenda, de vez que os seus moradores estavam a 30 léguas de distância da Matriz, que era Rússas, no Jaguaribe.

Não se quedou Dias Ferreira com a primeira obtenção eclesiásti- ca. Decorridos alguns anos, obteve nova licença para a construção de outra capela, tudo sob a mesma invocação de Santo Antônio de Lisboa ou Pádua, origem da atual Matriz de Quixeramobim, que através dos anos sofreu modificações para melhor, por intermédio de seus párocos.

A última e grande reforma, que a pôs no estado atual, foi reiniciada em 1902 por Monsenhor Salviano que com o Capitão Antônio Ferreira constituem as "vigas mestras" do sólido templo de Quixeramobim. Dom Joaquim José Vieira, o jovem e forte Padre de sua terra natal ou do Juazeiro do Padre Cícero, em visita pastoral a Quixeramobim, em 1885, sugeriu a reforma atual, que Monsenhor Salviano deu início no ano seguinte.

O início dos trabalhos trouxe uma grande provação ao povo da paróquia, grassando ali grande epidemia, que fêz centenas de vítimas e fêz as autoridades do Município e do Estado tomarem medidas pro- filáticas. Deram como "causa" da peste o revolvimento dos escombros das grossas paredes do velho templo, onde se achavam depositados muitos cadáveres, cujas inalações fétidas em contacto com o ar ambi- ente desenvolveram as febres. Entre as medidas tomadas pela autori- dade pública houve a suspensão dos trabalhos por muitos anos, que foram reiniciados em 1902 por Monsenhor Salviano, que não os pôde concluir, mas teve um digno continuador na pessoa do Cônego Aureliano Mota, irmão acatado do nosso querido Leota, e cujos dons oratórios e ilustração tive de apreciar na Matriz do Carmo nesta Capital. Teve a Matriz a sua inauguração a 15 de agosto de 1916, sendo orador da solenidade o notável orador sacro Frei Marcelino de Milão.

Foi vigário-colado de Quixeramobim o Cônego Antônio Pinto de Mendonça, que encerrou as sepulturas no velho templo e em vida foi ministro de Cristo e político, homem de Deus e do mundo, que fêz um movimento armado, de que falarei mais tarde. Era uma grande inteligência e cultura que teve alta projeção administrativa e parla- mentar.

Dêle vieram à terra cearense filhos notáveis, nascidos em Quixe- ramobim: Antônio Pinto de Mendonça, magistrado, homem de letras e notável parlamentar; e João Damasceno Pinto de Mendonça, antigo promotor em São João do Príncipe e advogado em Cantagalo, no Esta- do do Rio. Tornou-se depois, talvez, no seu tempo, o maior causídico da capital da República. Meu irmão, Dr. José Balthazar Ferreira Facó, trabalhou no escritório dêle e foi seu secretário. Guarda umas razões de advogado em importante questão no fôro do Rio, por êle ditadas, sem minuta e sem uma emenda, em noventa e três (93) tiras de almaço!

A semelhança do Cônego Antônio Pinto viveram os seus colegas Senador Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, Cônego Raimundo Fran- cisco Ribeiro, de Baturité, Padre Domingos Carlos de Sabóia, de Cas- cavel, Padre José Beviláqua, de Viçosa do Ceará e outros, sem es- quecer o Senador José Martiniano de Alencar, que se não foi o melhor e mais útil presidente do Ceará, decerto, foi o maior. Esses ilustres clérigos viviam assim e deram existência a muita gente digna e im- portante, que honra sobremodo o Ceará.


Entre 1750-1760, Antônio Pereira de Queiroz, capitão de cavalaria do Regimento de Jaguaribe (Russas), filho do casal Inácio Pereira de Queiroz Lima e Francisca Cavalcante Vasconcelos de Queiroz, do Barro Vermelho (Banabuiú), e sua mulher Helena
Helena de Oliveira Maciel, filha do casal do Apodi, no Rio Grande do Norte, Capitão Joa- quim Correia de Araújo e de sua mulher Anastácia Maciel de Melo, mudaram-se para o Sitiá, na freguesia de Quixeramobim, onde já mo- ravam irmãos e cunhados do casal Antônio Pereira e Helena Maciel.

Veio em companhia do casal Frei Miguel de Santa Tereza, de quem tratei nestes Fastos (Vide vol. 68 da Rev. do Instituto do Ceará; págs. 261-263).

No mesmo trabalho sobre Frei Miguel tratei de Antônio Pereira de Queiroz que morou durante muitos anos na Serra Azul, no sítio "Natividade", onde lhe nasceram os filhos.

A êsse tempo já morava na fazenda Quixinxé, na ribeira do Pirangi, a família de Balthazar Lopes Barreira e Antônia Barbosa, estabelecendo-se entre as duas famílias íntimas relações de amizade, que deram origem a casamentos entre filhos de Balthazar Barreira e An- tônio Pereira. Outros filhos de Balthazar casaram-se em Russas, Cas- cavel e Aquiraz, de modo que se sucederam os entrelaçamentos em família e com estranhos, estabelecendo-se laços de consanguinidade ou de afinidade entre muitas famílias. R. Torcápio, no seu "Ensaio Ge- nealógico", faz uma boa discriminação de algumas linhagens do Ceará. (Vid. Rev. do Instituto do Ceará, de 1924, pág. 237 usque 341).

Dessas Linhagens, devidamente estudadas, nasceram filhos notá- veis de Quixadá, Cascavel e Beberibe, na sua quase totalidade, e de outros municípios cearenses em menor número, assim como outros que tiveram berço por diversos pontos do território nacional. Assim o foram nàs armas, nas letras demais setores da atividade humana.

Entre êles há vultos de projeção nacional: o estadista Eusébio de Queiroz, o militar Clarindo de Queiroz, o clérigo Hélder Câmara, a escritora Rachel de Queiroz e outros.

Antônio Pereira mais tarde fixou residência na sua fazenda "Cur- ralinho", no Sitiá, onde veio a falecer a 10 de julho de 1774. O piedo- so Frade sepultou-o na Igreja de Quixeramobim. A sua viúva, dona Helena, veio a falecer já no XIX século (1811), mas foi sepultada na capela de Quixadá, abrindo ali o "Jazigo dos Queiroz", onde se enterraram muitos membros da Família.

Em 1789 a povoação de Santo Antônio de Quixeramobim foi ele- vada à Vila Nova de Campo Maior de Quixeramobim, e posteriormen- te, em plena séca grande, Antônio Pereira de Queiroz Lima, filho do Capitão de Cavalaria de São Bernardo, foi eleito juiz ordinário de Campo Maior, eleição que se renovava anualmente. Em 1796 o segun- do Antônio Pereira de Queiroz recebeu como recompensa aos serviços prestados à causa pública a patente de Capitão de Ordenanças de Quixeramobim.

Já no XIX século, Antônio Duarte de Queiroz, neto do Capitão de Cavalaria do Jaguaribe e filho do Capitão de Ordenanças de Qui- xeramobim, ocupou o cargo de juiz municipal de Campo Maior e teve de presidir ao julgamento de Estácio José Gama que, no dia 12 de fevereiro de 1834, ferira de emboscada a Luciano Domingues de Araújo, no momento em que êste seguia para a fazenda Tapuiará para se casar com Joana Batista Barreira, filha do Tenente de Milícias do Tapuiará, Inácio Lopes da Silva Barreira.

Era o primeiro júri que se realizava em Campo Maior, na ausên- cia do juiz de direito togado, na vigência do Código do Processo Cri- minal, de 29 de novembro de 1832, em substituição ao nefando e iníquo Livro V das Ordenações do Reino. O novo código estava ainda nos pri- meiros tempos de sua vigência e o juiz era leigo, com a circunstância importante de a nova lei não exigir a apelação para que fôsse execu- tada a sentença dos homens-jurados.

Ademais, veio posteriormente a lei de 10 de junho de 1835, a lei negra, que bem frisa os sentimentos da época, lei que o Cons. Paula Pessoa estigmatiza nestes têrmos: "...parece uma excrescência no meio das nossas aspirações a tudo o que é conforme a uma civilização sempre crescente..."

Mas era assim...

Que aconteceu a Mororó, a Anta, a Carapinima, a Ibiapina e a Bolão que foram fuzilados, por que não houve quem os quisesse en- forcar? Talvez o mesmo acontecesse a Alencar, a Queiroz Jucá, a Bal- thazar de Queiroz, a Pedro de Queiroz, a José de Queiroz, a Miguel de Queiroz, a João Aires e outros "monstros" de "17 e 24", se não fôssem os movimentos constitucionais que se precipitaram contra o absolu- tismo da Ibéria e suas colônias, se os imperialistas e a "Comissão Militar" já não estivessem fartos do generoso sangue dos liberais, derramado no Nordeste em holocausto a Moloch!...

Que vemos ainda em nossos dias?

A douta e liberal Inglaterra, pela Câmara dos Lordes, rejeitara o projeto de lei que suprimia a pena de morte na Grã-Bretanha. (In "O Nordeste", 11-7-1956).

Esperidião de Queiroz ("Antiga Família do Sertão"), sem ser li- terato ou jurista, mas médico culto e inteligente, justifica, literária e juridicamente, o procedimento de Antônio Duarte de Queiroz, no caso de Estácio José da Gama.

Temos o caso de Joaquim Pinto Madeira, "abrilista", mas homem de ação e destemido ser submetido ao pelotão de fuzilamento sem di- reito "a agravo nem apêlo".

Anos mais tarde, devido a abusos de poder, o art. 79 da lei de 3 de dezembro de 1841, que deu nova redação ao art. 301 da lei de 29 de novembro de 1832, teve opositores, alegando-se que o recurso (ex-officio) era "pouco consentâneo com a instituição dos jurados..."

O cronista de nossos dias, tendo entre si e os fatos históricos ocor- ridos um século de permeio, só pode censurar o que então se passava...

A família Queiroz só se separou, politicamente, de Quixeramobim em 1870, quando Quixadá foi elevado à categoria de vila com o cidadão Laurentino Belmonte de Queiroz, neto do juiz ordinário de Campo Maior, à frente da administração da nova vila do Ceará.


Em 1840-1841, na segunda presidência no governo do Ceará do Senador Alencar, o Cônego Pinto de Mendonça, em campo oposto a seu colega, preparou um movimento armado em Muxuré, de Campo Maior, contando, conforme João Brígido, com "a nata do partido" e com Antônio Cirilo de Queiroz à frente.

Alencar fêz seguir o Tenente-Coronel Pedro de Queiroz Lima, comandante da Guarda Nacional de Cascavel, acompanhado dos oficiais de sua Milícia: João Aires da Silva Olival (João Alves de Olivaes de João Brígido) e Francisco Balthazar Ferreira Facó, e tropa.

Era a primeira vez que membros da numerosa, unida e opulenta família Queiroz agiam em campos opostos. É que Antônio Cirilo, moço Queiroz de Santa Maria, havia se estomagado com um ato legal de Alencar, mal interpretado.

Com a chegada dos pés-de-poeira em Quixeramobim, dispersaram-se os amotinados de Muxuré.

Antônio Cirilo manteve-se contrário aos liberais, tanto que aos 80 anos de idade era do partido oposto ao do parente general Clarindo de Queiroz, Governador do Estado.

Os dois oficiais de Pedro de Queiroz eram igualmente valentes e destemidos, mas João Aires, como o concunhado Pedro de Queiroz, chegava às raias da loucura, enquanto Facó era prudente, razão por que, penso, acompanhava o futuro sogro nessas lutas.

Antônio Cirilo fêz a sua figura com a corneta desconhecida na- quele meio, e quebrou a harmonia de 1891, que proclamava: - "Todos nós somos Queiroz".

A crônica criminal de Quixeramobim teve outras culminâncias nos anos de 1853, 1894 e 1897, a última na Bahia com um filho dali.

Em 1951 vejo a lume o romance "Dona Guidinha do Poço", da autoria do escritor cearense Manuel de Oliveira Paiva, publicação que trouxe grande evidência literária ao autor, tirando-o da penumbra ou anonimato em que, injustamente, estava o seu nome.

Dona Guidinha passa a fazer parte da galeria do Guarani, Ino- cência, Luzia-Homem, Chanaan e outras grandes obras da ficção bra- sília. A literatura do Brasil deve êste notável romance aos cuidados e zêlo com que anos a fio Antônio Sales e Américo Facó guardaram os originais da obra, e perspicácia com que Lúcia Miguel Pereira os descobriu e no-los deu em letra de forma.

O romance foi escrito na época em que a família Lessa, de Quixeramobim, tinha ainda muita importância, e, naturalmente, o Paivi- nha não quis ferir suscetibilidades de pessoas com quem podia até manter relações de amizade.

Oliveira Paiva nos deu a ficção e Ismael Pordeus a realidade: tornaram-se ambos notáveis na cronologia da velha e conhecida cidade do centro do Ceará.

Trata-se do caso verídico de Dona Maria Francisca de Paula Lessa, a Margarida Reginaldo de Oliveira Barros do romance, filha do rico e opulento Capitão-mor de Quixeramobim, José dos Santos Lessa que, a 20 de setembro de 1855, mandara eliminar na cidade a seu marido Coronel Domingos Vitor de Abreu e Vasconcelos, o Major Joaquim Damião de Barros, da ficção.

Assim, importante membro da família Lessa estava envolvido nas malhas de ruidoso processo que abalou o meio rural e a capital da Província.

O julgamento realizou-se em abril de 1856, sob a presidência do Bel. Francisco de Farias Lemos, como juiz municipal na ausência do juiz de Direito, cuja brilhante carreira o levou ao Supremo Tribunal Federal e o fêz antes ocupar a presidência da Província do Ceará e a de seu Tribunal da Relação. Foram seus defensores à barra do Tribunal José Liberato Barroso, que pedira demissão de promotor público de sua terra natal para advogar dona Maria Lessa, e cujo talento, cultura e dons oratórios o fizeram ascender às mais altas posições na política, nas letras e na cátedra; e Leandro Chaves Melo Ratisbona, eximio homem de letras, encantador causeur e notável orador.

Mas, conta-se, foi escolhido a dedo o inteligente e culto bacharel Joaquim Mendes da Cruz Guimarães para ocupar a cadeira da acusação, com a circunstância especial de o presidente da Província, Vicente Pires da Mota, ter aguardado oportunidade para esse memorável julgamento.

Tôda essa gente, em plena mocidade, cintilando inteligência e ex- travasando cultura, deu um brilho excepcional e inapagável à crônica da oratória judiciária na pequena e longinqua Vila de Campo Maior, em abril de 1856.

A imprensa do dia publicou: "O Júri, o Lemos e o promotor Mendes têm sido inexoráveis", acrescentando: "Se a lógica e a eloqüência pudessem salvar a dona Maria Lessa e o Senhorinho, seus patronos teriam conseguido".

Em março de 1895 houve outro júri sensacional com o julgamento de outros membros da família Lessa.

Não era mais a vila de Campo Maior, mas a cidade de Quixeramobim, pois a lei no 770, de 14 de agosto de 1856, da autoria do deputado provincial Américo Militão de Freitas Guimarães, filho de Quixeramobim, que acabou como desembargador da Relação do Ceará, havia elevado a vila à categoria de cidade.

Eram julgados nesse segundo júri dos Lessas o Coronel Teófilo Lessa e seu filho Tenente-Coronel Fausto Lessa, acusados de mandantes da morte bárbara do comendador José Nogueira de Amorim Garcia, outro ilustre filho de Quixeramobim, na noite de 10 de março de 1894.

Foi outro júri sensacional que fêz época nos anais da crônica judiciária do Estado.

Foram advogados dos Lessas, Justiniano de Serpa e Martinho Rodrigues que, sem rendas nem arminhos no berço, foram irmãos nos triunfos oratórios, nos prélios jornalísticos e na adversidade política, sendo desnecessário consignar as altas posições a que chegou o primeiro no palarmento nacional e na administração pública, sem esque- cer o Dr. Francisco de Assis Bezerra de Menezes, outro filho ilustre de Quixeramobim. Era o Dr. Bezerrinha o famoso orador da tribuna do Juri de seu tempo em Fortaleza, que tive de ouvir na acusação a Júlio Nunes de Melo, acusação de que guardei de memória trechos e frases, que não vêm a pêlo citar.

Estêve na acusação o Coronel João Paulino de Barros Leal, outro ilustre filho de Quixeramobim. No processo contra os Lessas figuraram como testemunhas a mulher e uma cunhada do representante do Ministério Público. Seu nome se destacou no cenário estadual com a apresentação de um projeto de lei na Assembléia, propondo a mudança da capital do Estado para Quixeramobim. Estaria legislando para o futuro?...

Ninguém tinha ainda proposto cousa maior para Quixeramobim, salvo a "Liberdade" com que sonhara a invicta cidade, em 24.

Há, contudo, um contraste manifesto, evidente, entre os casos de 1853 e 1894, quanto à responsabilidade de membros da família Lessa: no primeiro, o matador do Coronel Abreu, Manuel Ferreira do Nas- cimento, vulgo Curumbé, numa fuga espetacular com mais 23 presos da penitenciária de Fortaleza, teve, segundo ofício reservado do chefe de Polícia ao presidente da Província (5.5.1856), a conivência dos mandantes do crime, para que ficassem a salvo do co-réu que os po- deria comprometer "quando corresse o Júri!". Enquanto o matador, no caso do comendador Garcia, Irineu Dias, na hora da morte, no mo- mento supremo em que se deixa a vida terrena e se pensa só na eterna, faz confissão pública "de ter sido o único autor do crime..."

Por isso escreve o Barão de Studart: "Dos condenados era um o Coronel Lessa, homem rico, respeitável ancião, que morreu prêso na enxovia de Fortaleza, reduzido à miséria e desonrado e sempre a protestar pela sua inocência. Terrível êrro judiciário". (Datas e Fatos, 1889-1924, pág. 67).

No Júri de Campo Maior, de abril de 1856, foi julgado e absolvido Marcolino João de Queiroz, moço rico e destemido, do casal de Santa Maria e irmão de Antônio Cirilo, acusado na morte de Manuel de Morais Rêgo, vulgo Tartaruga, de quem se disse ser "truculento e am- bicioso".

Marcolino de Queiroz, 50 anos depois, aos 75 anos de idade, na memorável noite de 16 para 17 de fevereiro de 1892, de armas na mão, estêve ao lado do parente governador Clarindo de Queiroz, na defesa do governo legal do Ceará.

Teve seu berço também em Quixeramobim Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, que teve projeção nacional, à semelhança do Padre Cícero do Juazeiro do Ceará.

A princípio era apenas o visionário de Bom Jesus, que evacuou para se entrincheirar em Canudos, ficando com a alcunha de "Bom Jesus", tudo na gloriosa terra de Ruy Barbosa e Castro Alves.

Já disse num trabalho de minha autoria que essa dolorosa luta fratricida teve um lado bom: deu-nos o maior livro que já se escreveu no Brasil sôbre sociologia: Os Sertões.

Euclides da Cunha escreve: "Canudos era o homísio de famigerados facinoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E êstes foram logo os mais chegados àquele homem singular, os seus ajudantes de ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos". ("Os Ser- tões", pág. 193).

Rocha Pombo escreve: "Os homens estão sempre armados, e dia e noite montam guarda a Antônio Conselheiro; parecem idolatrá-lo; e, cada vez que êle transpõe o limiar da casa em que mora, é logo rece- bido com ruidosas aclamações e vivas à Santíssima Trindade, ao Bom Jesus (era éle) e ao Divino Espírito Santo". ("História do Brasil", vol. X, pág. 408).

No meio em que vivia a família Maciel, no Ceará, as figuras mais intrépidas e ousadas, parece, eram Miguel Mendes Maciel, conhecido por Miguel Carlos, e sua irmã Helena Maciel. Miguel Carlos, ferido num pé e entrincheirado numa palhoça, defende-se de muitos Araújos foge dêles, como por encanto, do casebre incendiado. Helena Maciel es- pezinha o rosto do Araújo morto pelo irmão nas vascas da morte e fica satisfeita com o irmão assassinado (Miguel Carlos), porque êle acaba- va de matar o inimigo, um Araújo, irmão de Luciano Domingues de Araújo, que deveu a Miguel Carlos a sua morte no dia de seu casa- mento com a filha do Tenente de Milícias do Tapuiará.


Oliveira Paiva escreveu o romance-ficção; Ismael Pordeus escreveu o romance-realidade. Os dois se completam. Não pode um trabalho prescindir do outro. Ficção e realidade se confundem

O cotejo feito por Ismael Pordeus entre o romance e os documentos evidencia que o escritor cearense contou a história real de um drama de sangue, que se passou na terra do jornalista que o interpretou.

Arme-se a equação que o resultado será sempre o mesmo: a incógnita será Cajazeiras ou Quixeramobim, de vez que a identificação entre a Vila de Cajazeiras, da ficção, e da de Quixeramobim, da reali- dade, está perfeita, completa, evidentíssima.

Verifica-se da história sócio-religiosa e sócio-política de Quixeramobim que a capela de Antônio Ferreira precedeu de 59 anos à organização política do Município e têrmo de Vila Nova de Campo Maior de Quixeramobim: o início da construção da capela em 1730 e o levantamento do pelourinho de 1789. O romance de Oliveira Paiva informa que o altar precedeu de 59 anos ao pelourinho em Cajazeiras, exatamente como se passou na história da velha cidade.

Ali, na realidade, a árvore da liberdade foi posta no lugar do pelourinho, que no seu tempo significava progresso, mas na realidade violência. O pelourinho: Real! Real! Real! A árvore que o substiuiu: - Liberdade! Liberdade! Liberdade!

Da Cajazeira ali plantada dá João Brígido o seu testemunho de ainda existir no ano de 1900.

Ismael Pordeus ainda constata a diferença de idade entre Dona Maria Lessa e Dona Guidinha, atribuindo isso a um propósito do ro- mancista para estabelecer uma desconformidade, que na realidade não existia, entre a idade de Guidinha e Quinquim.

A humilde capelinha do Capitão Antônio Dias Ferreira transformou-se na grande Matriz de nossos dias e a fazenda Boqueirão na grande Cidade banhada pelo antigo Ibu.

Cabe agora a Ismael Pordeus, aceitando o alvitre de outro digno filho de Quixeramobim, o jornalista Lúcio Lima, enfeixar em volume o seu trabalho, digno da estante dos estudiosos da crônica do Ceará. Eu aconselharia a publicação num volume dos dois trabalhos: "Antônio Dias Ferreira e a Matriz de Quixeramobim" e "A Margem de Dona Guidinha do Poço", porque êles se completam nas pesquisas da história de Quixeramobim.


A heróica cidade do centro geométrico de nosso querido Ceará teve a sua parte de leão nos fastos da liberdade e do republicanismo com que sempre sonharam os povos das terras descobertas por Colombo, Cabral, Magalhães e outros navegadores.

No livro "José Balthazar Ferreira Facó" (In Memoriam) que tenho pronto para o prelo, sôbre meu Pai, há um capítulo (Pesquisas Históricas) que noticia a remessa do "Registro da cópia" do têrmo de "Vereação", de 9 de janeiro de 1824, da Vila de Campo Maior, da comarca do Crato, província do Ceará Grande, que êle faz à redação de "O Cearense".

Era a cessação da "Dynastia de Bragança", a proclamação de um "Governo Salvador" com uma "República Estável e Liberal" e envio de uma "deputação extraordinária" ao General José Pereira Filgueiras, composta do Padre Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e Melo (Mororó), do Tenente-Coronel Antônio Francisco de Queiroz Barreira (Jucá, filho do Tenente de Milícias do Tapuiará) e de Belarmino de Arruda Câmara. Deliberaram ainda Clero, Nobreza e Povo" que assumisse o novo governo o Capitão-mor José dos Santos Lessa em substituição ao Sargento-mor João Bernardes da Cunha.

Com a remessa dêsse documento e outro de igual importância, José Facó fêz uma carta ao Cearense, de que transcrevo no momento uma parte.

Ei-la: "São poucos os documentos que nos restam a respeito dessa triste época, e isso devido à portaria de 14 de novembro de 1824, que tenho à mão, na qual o imbecil e covarde José Félix, revolucionário de véspera, ordena a tôdas as autoridades da Província "fação aspar de quaesquer livros de sua repartição os officios, diplomas, portarias e quaesquer outros papeis que hajão de conservar a lembrança de tal infamia; como tambem abrazarão os impressos, proclamações, e escriptos apoiadores do systema confederativo ideado, de sorte não appareça nem ao mesmo o vislumbre dessa tristissima luz hoje de todo apagada e que tanto mal causou a Provincia inteira".

"E assim procedeu-se; no arquivo da Comarca daqui passou a vassoura reacionária; os livros do registro têm muitas folhas arrancadas; outras cobertas de tinta; apenas ficaram alguns documentos, não sei por que motivo, os quais pretendo dar à publicidade, a fim de que cheguem ao conhecimento de todos. Nessa ocasião remeto dois a V.S., pedindo-lhe que tenha a bondade de os publicar: o 1o é a ata da sessão extraordinária em que a Câmara de Quixeramobim proclamou a república é o grito de liberdade em 1824-, e o 2o é um ofício da Câmara daqui ao presidente da Provincia, vangloriando-se por ter o povo de seu têrmo assassinado o infeliz herói Tristão Gonçalves, e fazendo valer os seus direitos de prioridade na restauração do Governo Imperial. São Bernardo 29 de janeiro de 1877".

(De "O Cearense" - 18.2.1877).

Quixeramobim em 1832 agia da mesma maneira contra o imperialista Pinto Madeira. Assim é que, dado o ataque e morte de mais de cem homens em São Mateus, pelos "abrilistas", a Câmara Municipal de Quixeramobim tomou em consideração o ataque projetado à Vila do Icó, adotando estas medidas: reuniram-se em pé de guerra na Vila de Campo Malor 200 homens, seguindo 150 para São Gonçalo, sob o comando dos Capitães Antônio Duarte de Queiroz e Manuel Torres Câmara, no dia 22 de abril de 1832, ficando o restante a guarnecer a Vila. O capitão-mor Lessa entrou para essa defesa com trezentos mil réis em dinheiro, angariados entre doze pessoas do Município, para a manutenção da tropa, e êle, pessoalmente, com cem mil réis, mais a sua contribuição pessoal em gado de 28 bois, entre 320 rêses dadas por 147 pessoas do Município, segundo a informação do cronista de Quixeramobim de nossos dias.

Na efêmera e ousada República do Equador os Alencar e Queiroz estiveram unidos no campo da luta, como o haviam estado na marcha contra Cunha Fidié que com os seus se concentraram em Caxias e evacuaram a Vila de Campo Maior, no Piauí, e na passagem dos Alencares presos, sob o comando de Cunha Pedroso, pela ribeira do Sitiá. Tristão Gonçalves e Antônio Pereira, em "17", alicerçaram amizade que os identificou na luta pela liberdade e pela república, em "24".

Assim, Tristão, quando seguiu para Santa Rosa, acompanhado de Queirozes válidos e destemidos, deixou mulher e filhos na Casa-Forte, no Sitiá, fazenda de propriedade e residência de Antônio Pereira, antigo juiz ordinário de Campo Maior de Quixeramobim.


Eu te saúdo, no teu centenário, velha cidade, cujos campos se desdobram em esplêndidas planícies a se perderem de vista nesses ondulosos e trepidantes cromos de verdura, onde as águas fertilizantes de teus rios e regatos deslizam e espalham a fartura por todos os teus recantos!...

Eu te saúdo, no teu festivo jubileu, vetusta cidade, cujos campos, às vêzes, açoitados pela inclemência de um sol de brasa, que te calcina e cresta o vasto planalto, castigado pela crise climática, mas que teus fortes e dignos filhos sabem gozar ou sofrer no seu contraste entre a abundância e a miséria!...

Eu te saúdo, secular cidade do ciclo do gado, cujas campinas na estação hibernal se enchem do panasco e do mimoso a cobrirem o lombo dos nédios e fortes bovinos que te pastam o ubérrimo solo!...

Eu te saúdo, cidade do centro geométrico do Ceará, que nasceste, cresceste e prosperaste na bela e destemida civilização do pastoreio de grandes rebanhos que recheavam a bôlsa de teus robustos e valentes fazendeiros!...

Eu te saúdo, magnífica cidade da Liberdade, que a 9 de janeiro de 1824 vibraste de entusiasmo e içaste a bandeira da República do Equador e soubeste repudiar e sofrer o despotismo que fêz rolar cabeças de mártires pela pregação das idéias e princípios de "89", "17" e "24"!...

GENEALOGIA

Este texto foi originalmente publicado na Revista Academia Cearense de Letras do Ceará.

FAMíLIA QUEIROZ - FERREIRA DE BEBERIBE - OS FACóS - TURBULENTOS E TRAGICOS

BOANERGES FACÓ

VI

Manuel Pereira de Queiroz, que veio para o Brasil em 1630, Antônio Duarte de Queiroz, em 1685, e Inácio Pereira de Queiroz Lima, em 1710, os ascendentes mais remotos, vin dos de Portugal, da família Queiroz do Ceará, foram três cida dãos profundamente pacíficos que viviam para as suas famí lias e haveres . Mas em época posterior à existência dêles, a 14 de julho de 1789, deu-se a queda da Bastilha - o símbolo do despotismo encarnado nas monarquias absolutas de Luís XIV e Luís XV na França e de Carlos V e Filipe II na Espanha.

Os princípios e idéias que levaram o povo francês à revo lução haviam feito a sua viagem de "circundomínio" no mun do civilizado, de que resultou a independência das colônías inglês as da América do Norte ( 1776), quase três lustros antes da "grande revolução", que se achava em estado latente e in flamava a alma dos demais povos americanos dependentes de metrópoles européias. Todos êles se empenharam em lutas de cisivas e sangrentas contra os povos descobridores e coloniza dores da velha Europa no Novo Mundo.

Estabeleceu-se por tôda parte a luta entre os colonos e os nativos. As violências dos primeiros cederam ao trabuco e re presálias dos segundos. Surgiram os movimentos libertadores na América do Sul, à semelhança do que se dera na América do Norte. Lá hªviam surgido George Washington, Tomás Jef ferson, Benjamin Frànklin, que subtraiu o raio à natureza e viveu em íntimos contactos com Lafayette na França revolu cionária contra a Inglaterra conservadora, e outras grandes figuras libertadoras. Na América do Sul surgiram Pedro I, José Bonifácio, Simon Bolívar, Antônio José de Sucre, José de San Martin e outros libertadores no arrebatamento aos cetros pe ninsulares a independência política das colônias sul-ame ricanas.

Do alto emanava a "injustiça" ao invés da "justiça so cial", que devia amparar os súditos e governados . Mas a inde pendência entre nós n'&o fêz desaparecer as violências e a opressão. Daí, em regime constitucional, a Confederação do Equador e a Abdicação, como no absolutismo, sucederam à Inconfidência Mineira e a Revolução de 17. Assim continuou a luta pela liberdade, como existira para a independência. A falta de justiça e de amparo da lei provocara no Ceará as lutas entre Araújos e Maciéis, Cavalcantes e João André, José Leão e Patacas e sobretudo entre Montes e Feitosas.

Era o dia dos potentados dos sertões. Nada escapava à lei do "baraço e cutelo". Assim é que no recanto bucólico, pací fico e remansoso do Barro Vermelho, às margens do Bana buiú, na zona jaguaribana, onde residia e pregava a ordem e a paz o feliz casal Inácio Pereira de Queiroz Lima e Francisca Cavalcante Vasconcelos de Queiroz, surgiu o turbulento Fran cisco Pereira de Queiroz - o nono filho do casal, em cujas veias corria o sangue do bondoso e ordeiro português e da al tiva, virtuosa e destemida mulher, que vivia para o lar, para o marido e para os filhos, mas que trazia, em recalques, justas c profundas animosidades contra os Britos, pardos do Jagua ribe, e da "justiça" da época, de que tratei no 3° capítulo dês te livro.

Francisco Pereira de Queiroz, moço rico, destemido e vo luntarioso, teve por bem pôr a sua riqueza, vontade e deste mor na proteção dos fracos, embora as suas atitudes tivessem por exercício violência, às vezes, desumana. As atitudes de Francisco Pereira foram contagiantes ao espírito de Manuel Pereira de Queiroz, décimo filho do casal de Barro Vermelho, que acompanhou o irmão nas suas violências e crimes. Fran cisco Pereira tornou-se, como diz Esperidião de Queiroz, "um verdadeiro espadachim temido em tôda a ribeira".

Há passagens na vida de Francisco Pereira que o defi nem. Havia, em Várzea Grande, na ribeira do Palhano, um homem mau e perverso, que tinha por hábito maltratar e cas tigar os que lhe eram subordinados, conhecido por Pai Fran cisco. O moço Queiroz, embora rico, fêz-se de vaqueiro em Várzea Grande. Pai Francisco ficou logo contra o novo va queiro que lhe não queria cumprir ás ordens. Francisco Pe reira, na primeira oportunidade, aplicou forte surra no mulato Pai Francisco que se corrigiu de seus maus e perversos cos tumes, enquanto Francisco Pereira deixava a vaqueirice ...

Manuel Pereira ofendera uma moça de família inferior à sua. A justiça perseguiu-o, sem que a família lhe tomasse a defesa, de vez que condenava o ato reprovável. Ao tempo es tava na Bahia Francisco Pereira, que, levado por preconcei tos de raça, aconselhava o irmão que não casasse. Manuel Pereira contraiu matrimônio com a ofendida com quem vivia feliz. Francisco Pereira, de volta da Bahia, formulou um pas seio, entre Jaguaribe e Banabuiú, com o irmão e a cunhada. Dêsse passeio não mais voltou Maria Madalena e nem a jus tiça lhe descobriu o paradeiro .. .

Os dois irmãos ficaram sobremodo visados pela justiça, razão por que se mudaram para a Bahia, em cuja sede de go vêrno viviam bem. Certo dia, porém, Francisco Pereira viu um velho forte, casado com uma mulher moça e bonita, surrar a própria mulher. Francisco Pereira, revoltado com o ato do velho, caiu sôbre o surrador, tomou-lhe a vítima das mãos e deu-lhe alguns trompaços. Dada a importância que tinha o velho na terra, os dois irmãos homiziaram-se na mata de São Jo'ão, na casa do vigário a quem contaram o que se passara em Salvador. O padre gozou com a narrativa, mas por trás man· dou dizer ao velho surrado que os irmãos Queirozes estavam em sua casa.

Não tardou o resultado da denúncia. Veio, sem perda de tempo, uma escolta que os levou presos para a sede da Capita nia, onde estiveram muitos dias detidos. Uma vez soltos, pas saram por São João e mataram o vigário. Por êste crime revoltante foram presos e remetidos para o presídio de Li moeiro de Lisboa.

Há em tudo isso um misto de bondade e perversidade que se chocam .. .

Jáder de Carvalho, falando sobre Francisco Pereira, es creve: "Rapazes turbulentos - respondi - era o que não faltava no Nordeste colonial, principalmente no Nordeste pas toril. Como a senhora sabe, no século dezoito, e ainda um bom pedaço do século dezenove, o sertão era agitado, em suas raízes sociais e políticas, pelos grandes senhores rurais, do nos de fazendas que mais pareciam verdadeiros países. Tais senhores fundavam o seu poder no domínio absoluto da terra e da plebe que os servia na vaqueirice, no amanho do solo e nas lutas entre famílias. Nesses latifúndios a casa forte era o sinal evidente do clima social reinante. E, dentro dêsse clima, moços valentes desempenhavam um papel que não pode ser desprezado" (ln "Romance da Família Queiroz", no "Diá rio do Povo" de 31 . 3 . 1948).

João Brígido, por sua vez, escreve: "O meio social, em que se vivia, só permitia que cada v.m justiçasse para si . A necessidade de defesa era imperiosa, e os preconceitos civis e religiosos, as profissões, tudo, enfim, dispunha à crueldade. Os índios que não tinham noções de propriedade, eram toda via salteadores, além de pagãos; lego, matavam-nos desapie dadamente. Os brancos se atribuíam o direito vitae et necis sôbre os africanos. As crianças abriam os olhos, vendo ma tar àqueles e flagiciar a êstes, e entravam para o trabalho, endurecendo o coração na indP,stria única do tempo - a cria ção de gados, que se fazia, castrando, cerrando os chifres, jar reteando, tangendo o aguilhão, derribando e, finalmente, san grando no jugular. Com tal educação, matar e sei morto eram cousas triviais, além de que o homem tem coração, de um lado, - o canhoto" . ("Ceará - Homens e Fatos", pág . 286) .

Francisco e Manuel de Queiroz, quando se achavam no presídio de Limoeiro, souberam de editais em que El-Rei con vocava voluntários para as lutas na Africa contra os negros. 1i:les se apresentavam como voluntários e seguiram para a luta, onde por atos de bravura foram promovidos ao pôsto de oficiais do exército português e tiveram perdão pelos crimes cometidos. Manuel Pereira casou com uma filha do coman dante da Fortaleza de Goa, moça que era a mãe ou tia do Conselheiro Eusébio de Queiroz, grande vulto do 2.0 Reinado, e lá findou os seus dias; Francisco Pereira voltou ao Brasil e fixou residência na Bahia, no lugar Santo Amaro. Ali che gando, encontrou a moça que êle havia tomado das mãos do marido surrador, viúva, e com ela contraiu matrimônio. O novo casal deu origem aos Queirozes da Bahia. Tudo êle con tou em carta, de 11 . 7. 1785, a seu irmão Filipe Pereira Ca valcante, quarto filho do casal de Barro Vermelho, na ribeira do Banabuiú.

Conta-nos Antônio Cirilo de Queiroz (Genealogia da Fa mília Queiroz) que teve de ler e reler tantas vêzes essa mis siva que a decorou em tôdas as suas páginas. Guardava-a, como uma relíquia de família, a sua tia-avó Maria de Jesus, freira da Ordem 3a de São Francisco, que era sobrinha legí tima do autor da carta, carta que Cirilo tinha ardente desejo de possuir, n·ão só pela importância da mesma, como porque tinha grande simpatia por seu autor, mas não tinha coragem de tirá-la das mãos da freira. Tomou -consigo tnesmo o pro pósito de, por morte da tia, ficar com a carta, mas a êsse tem po Cirilo estava às voltas co a justiça de Parnaíba, assunto de que tratarei mais adiante, e a desejada carta perdeu-se, não lhe sendo mais possível obtê-la. Decerto foi rasgada, de vez que ninguém, como Antônio Cirilo, na qualidade de genealo gista da família Queiroz, tinha interêsse em guardá-la.

Filipe Cavalcante, a quem Francisco Pereira escrevera da Bahia, contando o que se havia passado com êle e Manuel Pereira, depois que saíram da Bahia com destino ao presídio de Limoeiro, em Lisboa, era o quarto filho do casal de Barro Vermelho, na ribeira do Banabuiú, e moço também violento e instruído. Assim é que certa vez jantava com outros ami gos na fazenda Goiana Grande, na capitania de Pernam buco, estando entre os convivas o moço Cláudio da Silva Maia, que era metido a gaiato e motejador. O prato por excelência do ágape era um cozido gordo que trazia um osso chamado "corredor". Cláudio, aproveitando o momento, disse que o Snr.· Filipe, como sertanejo, é que devia saber "bater corre dor", ao que retorquiu Filipe que sabia. Chamou a si a tra vessa do cozido, arregaçou as mangas e limpou bem da carne o corredor. Levantou-se com o osso empunhado e disse que, em falta de batedor, ia batê-lo na cabeça de um atrevido, e, dizendo estas palavras, deu forte pancada na cabeça de Cláu dio, que caiu ensanguentado no chão.

Miguel José de Queiroz Lima, irmão de Antônio Pereira, da Casa Forte, e de José de Queiroz, do Riacho Fundo, era homem inteligente, forte, bonito e violento. Possuía fortuna, mas era perdulário . Não guardava fidelidade à espôsa, como a maioria dos homens abastados da época. Passava todos os anos em Recife, onde muito gastava com extravagâncias e mulheres. Gostava de dizer em alta voz o que estava pen sando consigo mesmo. Um dia estava deitado ao colo de uma dessas mulheres e disse: "Que estará fazendo Dona Vicência (era a mulher dêle) neste momento?", ao que lhe respondeu a rapariga: "Está, como você agora, com um homem no colo". Miguel José levantou-se furioso, deu murros na cara da ra pariga, dizendo-lhe: "Se te dou confiança, não é para falares de minha mulher. Sai já daqui".

Miguel José de Queiroz teve filhos que cometeram vio lência, que chegaram à prática do crime. Delfino José de Queiroz, seu filho, cometeu um delito que teve causa ime diata e remota . Certa vez vinha acompanhado de irmãs, de Baturité a Casa Forte, na ribeira do Sitiá, em visita aos tios e primos . Na sua passagem pelo Choró, em frente da casa de José Ferreira Carão, saiu contra os cavaleiros um cão fu rioso, que fêz o cavalo de uma das moças pô-la ao chão, sem que um caboclo, que estava no alpendre da casa, fizesse qual quer movimento de defesa ou auxílio. Delfino, sem dizer pa lavra, pôs a irmã novamente na sela e seguiram viagem. Che gados a Casa Forte, apeou as irmãs e voltou sôbre os mes mos passos à casa de Carão, onde deu cabo do caboclo. Os Queirozes já traziam Carão atravessado na garganta desde o movimento revolucionário de 1817. 1: que em 17, quando os Alencares passavam pela ribeira do Choró, sob o comando de Manuel da Cunha Freire Pedrosa, amarrados e algemados, nos mais atrozes e revoltantes sofrimentos, Antônio Pereira, da Casa Forte, e seu filho Miguel Francisco foram ao encon tro dos presos.

Antônio Pereira, diplomático e hàbilmente, fêz sentir que os sofrimentos, por que iam passando os presos, poder lhes-iam causar mesmo a morte, o que muito revoltaria, de certo, o Governador Sampaio. :tste, naturalmente, desejava apresentar os presos sãos e salvos à justiça para os devidos castigos . Pedrosa, atemorizado com o que pudesse aconte cer da parte do Governador pela má condução dos presos, deu lhes boa alimentação e menos sofrimentos. Na noite seguinte os presos e a escolta pernoitaram no lugar Várzea das Bêstas, na casa de residência de Carão. Dado o menor rigor com os presos, após a palestra entre Antônio Pereira e Cunha Pe drosa, à noite os detentos fugiram.

Dado o alarme, os comandantes e soldados, guiados por Carão, que era bom rastejador, alcançaram os fugitivos na ribeira do Pirangi, quando foram, novamente, amarrados e algemados. Desde então os Queirozes ficaram prevenidos com Carão.

Outro filho de Miguel José de Queiroz, de nome Leo poldo, cometeu revoltante crime de homicídio, mas o seu ir mão José Faustino, revoltado com o ato do irmão, perseguiu-o na justiça e Leopoldo acabou condenado a "galés perpétuas".

Dona Francisca Cavalcante Vasconcelos de Queiroz, ca sada com Inácio Pereira de Queiroz Lima, residente em Bar ro Vermelho, na ribeira do Banabuiú, tinha uma irmã de no me Bertoleza Cavalcante Vasconcelos de Queiroz, casada com o português Vitoriano Nogueira de Queiroz, casal que tam bém fixara residência em Barro Vermelho, embora tenha tido residência em vários lugares e tenha, afinal, voltado para Barro Vermelho.

Esse outro casal Queiroz deixou descendentes espalhados por tôda parte, com bom conceito e ótimas qualidades.

Vitoriano e Bertoleza moraram por algum tempo no lugar Itans, na ribeira do Choró, onde morava um mulato muito rico de nome João de Freitas Araújo, que pelo dinheiro que lhe enchia a burra se julgava com direito de melhorar o san gue racial com entrelaçamentos com gente branca. Queria fazer o que tentara o mulato José Ferreira da Silva Tubarão, que pretendeu casar-se com a moça branca Helena de Olivei ra Maciel, na fazenda Papagaio, no Rio Grande do Norte, filha do Capitão Joaquim Correia de Araújo e de sua mulher Anas tácia Maciel de Melo, de quem já tratei no capítulo III dêste livro, sob a rubrica "Papagaio". Assim, Freitas combinou com Vitoriano o casamento de João de Freitas Filho com a filha mais velha de Vitoriano, casamento que realizar-se-ia quando Dona Bertoleza, que não concordava com o mesmo, estivesse de resguardo, de vez que estava em vésperas de dar à luz ou.:. tro filho. É que Dona Bertoleza assim agia porque guardava . eternos recalques do que sofreram da "justiça" e dos pardos Britos do Jaguaribe. Já estava de cama Dona Bertoleza, quan do soube que o casamento realizar-se-ia à sua revelia . Chamou uma filha menor e pediu-lhe uma faca; e mandou que chamas se a filha noiva, mas esta não lhe atendeu, ou por aviso da irmã ou por conhecer o gênio violento da mãe. Realizou-se o casamento e o novo casal fixou residência em Itans, onde mo rava o velho João de Freitas, que de tão rico e importante tinha mesmo capelão em casa. Os fatos comprovaram mais tarde que Dona Bertoleza tinha razão de não querer o casa mento da filha com o mulato e não quis mais morar em Itans, e, assim, voltou com o marido para o Barro Vermelho, onde morreram.

A segunda filha de Vitoriano e Bertoleza casou com o per nambucano Antônio Ferreira de Góis, casamento de gôsto de todos.

Quando a mulher de João de Freitas Filho esperava ter filho, morre-lhe o marido. Depois do parto o velho João de Freitas tomou o neto e abandonou a viúva. Esta, sentindo-se só e abandonada pelo velho, escreveu ao cunhado Antônio de Góis, para que a fôsse buscar de Itans para o Barro Vermelho, onde estavam novamente residindo seus pais. Góis, bondoso e solícito, com a aquiescência de todos, foi a ltans para trazer a cunhada. Quando os dois deixavam ltans a viúva disse para Góis que não queria sair dali de mal com ninguém e, assim, queria despedir-se de João de Freitas, no que foi atendida pelo cunhado. João de Freitas apareceu-lhes à porta, envolto num capote ou redingote, e, quando dava a mão a Góis, traiçoeira e perversamente, desfechou-lhe um tiro de pistola que o pros trou sem vida. Antônio Cirilo atribui o ato de João de Freitas ao fato de Antônio Góis haver feito censuras a Freitas pelo abandono em que o mulato deixara a viúva do filho.

João de Freitas, muito rico e potentado, n·ão foi incomo dado pela justiça da terra. Que se verificou em face dessa impunidade?

A viúva de Góis, numa demonstração clara e positiva do "sangue varonil" de Dona Bertoleza, que lhe corria nas veias, ante o procedimento criminoso das autoridades da Capitania do Ceará, tomou passagem em Pernambuco para Lisboa, na queles tempos de rara navegação e de difícil travessia dos mares, para ir fazer a sua justa queixa a El-Rei de Portugal, que no momento era Dom José I. A heróica e virtuosa viúva fêz a sua queixa a quem de direito e pediu justiça contra o monstruoso delito que tão bem se acomodara nos moldes da época. El-Rei mandou ordem, não só para o Capitão-Mor do Ceará como para as demais autoridades a quem o caso interes sasse, para que João de Freitas fôsse, devidamente, processa do e julgado. O velho potentado foi perseguido pela justiça e fugiu para a Bahia, sendo prêso, processado e condenado pelo bárbaro crime.

Na época do crime, João de Freitas havia arrematado os dízimos da Capitania do Ceará, e, caindo em atraso nos paga- . m.entos,- em virtude da prisão, para com a Fazenda Real, os seus bens, que se estendiam pelas terras do Sitiá, Pirangi, Choró, Aracoiaba, Baturité, Aquirás e outras partes, foram à hasta pública para os devidos pagamentos à Fazenda, o que reduziu a sua fortuna à terça parte, segundo nos informa An tônio Cirilo.

Percorri tôdas as páginas do preciosíssimo manuscrito de Antônio Cirilo, que, escrito em linguagem de "campônio", conforme observa J o·ão Brígido, deve ser pôsto em português correntio e dado à publicidade, e não encontrei, infelizmente, o nome dessa heroína. Presumo que, por um lapso, escapou o nome da notável campônia à prodigiosa memória de Antônio Cirilo, porque, quando êle desconhece um fato ou aconteci mento, faz declaração nesse sentido.

Simões Correia de Araújo, filho de Joaquim Correia e de Anastácia Maciel, do Apodi, e genro de Inácio Pereira e Fran cisca Queiroz, do Barro Vermelho, atraído pela família da mu lher, mudou-se do Rio Grande do Norte para o Banabuiú no Ceará e dêste último lugar para o Sitiá, onde situou a fazen da de criar "Cruz". Na sua mudança para o Ceará, deixou no Ceará-Mirim vários bens inclusive gado bovino e cavalar. Ali voltândo mais tarde para liquidar tais bens, trouxe entre ou tros para o Ceará um lote de dezesseis éguas pretas acompa nhadas de um reprodutor prêto foreiro de ótima qualidade. Não tendo onde pôr êsses animais, entregou-os a André Vidal de Negreiros, neto do herói branco de Pernambuco contra os batavos nas batalhas dos Guararapes e casado com uma prima legítima dêÍe Simões. Negreiros deu-os à sorte de um vaquei ro. Na reprodução dêsses animais nasceu um poldro com as qualidades do reprodutor. Vidal quis que Simões desse essa cria à sorte do vaqueiro com o que não concordou Correia de Araújo, declarando-lhe que o daria a êle Vidal ou daria ao vaqueiro se fôssem duas crias iguais na .qualidade e no sexo. Negreiros não se conformou com as justas ponderações do primo afim e lhe restituiu os equinos.

Um belo dia Simões viajava e pernoitou na Barra do Sitiá, onde no dia seguinte, pela manhã, que era domingo, assistiu missa na capelinha do lugar. Viu ·ali uma mulher casada por quem se apaixonou. Entenderam-se e passaram a noite juntos. André Vidal, na qualidade de juiz, teve conhecimento do adul tério e fêz perseguição tenaz e revoltante contra Simões, que teve de mudar-se para o Piauí, onde moravam pessoas de sua família inclusive a velha genitora. Dizia Negreiros que man daria Simões para o presídio de Limoeiro, em Lisboa, como acontecera com Francisco e Manuel Pereira de Queiroz, cunha dos de Correia de Araújo. Na fuga para o Piauí viu-se cerca do por fôrças a mando de Vidal, das quais pôde escapar. Ne greiros mandou diligência contra Simões, no lugar Barras, na capitania vizinha. Correia de Araújo fugiu dali para a Bahia e fixou residência na Feira de Santana. Negreiros, sabendo da nova residência do primo afim, mandou ordem de prisão con tra êle. 1!:ste último ato de perseguiç·ão foi a pétala que fêz transbordar o cálice do sofrimento. Simões ficou justamente furioso e procurou vingar-se. Voltou ao Ceará e procurou André Vidal. 1!:ste estêve um dia na Barra do Sitiá em busca de sua fazenda Maceió. Pouco depois passou por ali Simões, que teve notícia da passagem de Vidal e seguiu nos seus pas sos, sem comunicar a qualquer as suas intenções. Neste dia Negreiros não podendo, antes do "descambar" do sol, alcançar a sua fazenda, fêz descanso à sombra de ramalhudas juremas brancas. Simões emboscou-se com os que o acompanhavam e um de seus homens deu um tiro certeiro em André Vidal, que caiu morto. Acompanhavam a Vidal o genro e a filha. O genro foge e deixa a espôsa. Simões aproxima-se, a moça o reconhe ce e lhe diz que a mãe, prima dêle, aconselhava sempre ao marido que não perseguisse seu primo. Simões depois do crime rleixa o Ceará e vai para Barras no Piauí, onde morreu.

Antônio Correia de Araújo, filho do Capitão Joaquim Correia e de Dona Anastácia Maciel, casou-se com Isabel Lopes Barreira, filha de Baltasar Barreira e Antônia Barbosa, da fazenda Quixinxé na ribeira do Pirangi. Antônio Correia, a contragosto da mulher, ficou morando com os pais que, já ve lhos, não quis deixar sós. Isabel teceu indisposições, que pro. vocaram dolorosa tragédia. Um dia Antônio Correia interpelou da própria mãe o motivo p&r que ela falava dêles ( êle e a es pôsa) , ao que Anastácia lhe disse que se tal fizesse estaria a falar dela mesma. No momento estava presente outro filho de Anastácia, de nome Francisco Correia de Araújo, que tra balhava com um trinchete em couro, instrumento próprio para êsse serviço. Francisco condena o irmão, de faca em punho, em tom ameaçador. Antônio lança mão de um espin garda de caça e desfecha um tiro que não atinge o alvo. En tão Francisco corre sôbre o irmão e lhe vibra golpe que lhe tirá a vida. Antônio Cirilo, que tem sempre uma observação ou comentário apropriado, diz que "Isabel lhe metia (no mari do) pedras nos sapatos". Francisco Correia fugiu para o Piauí, onde constituiu numerosa e importante família . .

Na manhã de 12.2. 1834, na fazenda Tapuiará, às mar gens do riacho do mesmo nome, de propriedade do Tenente de Milícias Inácio Lopes Barreira e de Joana Batista de Quei roz, realizar-se-ia o casamento da filha do rico casal, de nome Joana Batista Barreira, com o rico fazendeiro de Boa-Viagem, Luciano Domingues de Araújo, pertencente aos Araújos, que viviam em violentas e permanentes lutas com os Maciéis de Tamboril, de cujo seio provém o Antônio Conselheiro, de Ca nudos, na Bahia. Quando o noivo vinha com grande acompa· nhamento de amigos e ricos fazendeiros, de Quixeramobim em busca do solar do Tapuiará, deparou-se no caminho com uma emboscada feita por Estácio José da Gama a mando de Miguel Carlos Maciel. Gravemente ferido Luciano, foi pôsto numa rêde e conduzido para a casa da futura espôsa, que o esperava vestida de noiva, cercada das numerosas e opulentas famílias a que estava ligada. Lucial'lo, nas váscas da morte mas no cum primento da palavra empenhada, manifestou à noiva o desejo de que o casamento, fôsse realizado sem perda de tempo. Realizou-se o casamento na hora da morte, seguindo-se-lhe a morte do nubente e ficando a jovem espôsa donzela, que, posterior mente, casou com ·Francisco Alves de Lima, de quem descen dem importantes famílias Queiroz-Barreira.

Quero concluir o capítulo "Turbulentos e Trágicos" com o nome de Antônio Cirilo de Queiroz, autor de memórias sôbre a Família, e um dos mais violentos, intrépidos e inteligentes dos Queirozes.

Veio a falecer no comêço do presente século, maior de no venta anos, idade a que têm atingido alguns membros da fa mília . Por sua morte, João Brígido escreveu verdadeira página antológica, cousa que a sua pena de ouro sabia fazer como nin guém. Devo transcrevê-la na íntegra, para que não se perca em coluna de jornal e como uma justa homenagem a Antônio Cirilo.

Ei-la:

"Antônio Cirilo de Queiroz.

Faleceu, na fazenda Santa Maria do Quixadá, na idade de 92 anos, êste homem, que tanto se agitou e tamanho ruído fêz na terra, no comêço da sua vida para acabar como espécie de Nestor, e ser como um registro da história de seu tempo, da qual conservou uma perfeita memória.

Turbulência e excessos da mocidade passaram para darem idéia daquela verdade, que pregava o califa Ali: "Todos os ho mens semelham-se mais ao seu tempo, em que vivem, do que aos pais de que descendem".

Os pais de Antônio Cirilo eram as criaturas mais pacatas do' mundo, êle, porém, duma vivacidade e energia espantosa, atirando-se às aventuras mais perigosas, e chegando até os cri mes de maior estrondo.

Depois de quedas e erros mil, com a opinião coeva, veio o arrependimento e a vida reparativa, para acabar bom homem e cidadão útil.

É que dormiam na natureza as boas qualidades; aquilo fôra o doidejar da bêsta mal soprada pelos exemplos e boas práticas, dizemos pelo meio social.

O homem é uma dualidade em regra - a carne, que é demônio, o espírito que se faz anjo, quando passam a dominar o fósforo e o carbono que diminuíram, fazendo baixar a temperatura da vida.

Cirilo deixou, escritas, em linguagem de campônio, muitas notícias e memórias sôbre os acontecimentos do seu tempo, e uma genealogia de sua família, mui importante na política de outras eras, e com raízes nobilíssimas nos tempos.

Nossos pêsames à sua ilustre família."

Antônio Cirilo estêve dentro do postulado do califa Ali: foi mais a sua época do que a sua ascendência. Era filho de pais pacíficos e ponderados. O seu avô paterno, o Sargento­ -Mor José Lopes Barreira, era um homem riquíssimo e bonís simo. O seu cunhado Miguel José de Queiroz, homem violen to e destemido, ficou de mal com Lopes Barreira. Numa via gem que fêz ao Rio Grande do Norte, descobriu ali que a quar tavó de Lopes Barreira era a índia Piaba de Cunhaú, filha do cacique da Aldeia de N atai, que casou com o português Custó dio de Brito. O pai de Piaba, depois de cristão, era Estêvão Barbosa e sua m·ãe Rita da Estrêla . Ela, cristã, se chamou Francisca Barbosa de Brito. Lopes Barreira não ligava a essas indisposições do cunhado. Assim é que, quando estava para morrer, Miguel José lhe devia dois mil cruzados, cujo docu mento êle rasgou antes da morte. O avô materno de Cirilo, o Capitão de Ordenanças Antônio Pereira de Queiroz Lima, vi veu 82 anos e passou 42 anos viúvo. Durante êsses longos anos de viuvez guardou fidelidade à memória da espôsa, obrigação que, aliás, tinha cessado com a morte dela.

Antônio Cirilo de Queiroz nasceu em 8 de março de 1811 em rico berço, fêz-se homem na opulência em que viviam os seus pais na fazenda Santa Maria, na ribeira do Sitiá, de vez que secaram como nobres. José Lopes Barreira Filho, pai de Cirilo, teve de seu pai José Lopes Barreira, da fazenda Qui xinxé, na ribeira do Pirangi, como presente de núpcias a re ferida fazenda Santa Maria, e sua mãe Helena Isabel de Jesus, filha de Antônio Pereira de Queiroz Lima, da fazenda Casa Forte, também na ribeira do Sitiá, recebeu de seu pai também, como presente de núpcias, dois mil cruzados em gados. Assim, tiveram os pais de Cirilo, no ato do casamento ( 1808) , uma das mais importantes fazendas dos sertões do Sitiá, devidamen te situada. Antônio Cirilo veio a falecer já no comêço do sé culo presente tendo atravessado o século XIX, cheio de lutas pela liberdade, de morticínios. judiciários, de enforcamentos e fuzilamentos do rei contra o povo e de extermínio de famílias por famílias. A tudo estêve presente e tomou parte nesses acon tecimentos. AntôÓio Cirilo foi levado à prática de violências e crimes por um fatalismo da época a que não podia escapar com o seu temperamento, mocidade e coragem. A fatalidade lhe caiu em cheio em plena mocidade. Assim é que em 1835, o terceiro filho do casal de Santa Maria, Justino Antônio de Queiroz, desejando aumentar os haveres da família, comprou, em Fortaleza, ao comerciante Luís R. Samico seis contos de réis de fazendas, que foi vender no Piauí. Ali chegando em Pesquizeiros, vendeu a mercadoria por atacado a Antônio das Mercês Santiago por gaos de solta que iria receber no comêço do inverno futuro (1836) . No devido tempo voltou a Pesqui zeiros para receber o gado. Quando ali chegou, Justino de Queiroz tomou a casa de um parente ali residente. Num mo mento em que passava em frente da casa de Mercês, êste lhe desfechou dois tiros que o prostraram sem vida . João do Car mo, arreeiro e pessoa de confiança de Justino, assombrou-se com o terrível acontecimento e voltou, em marcha forçada, com o comboio apenas em dez dias a Santa Maria, onde o tris te fato causou profunda consternação e revolta. O pai de Cirilo, porém, ponderado e pacffico, procurou o Presidente da Pro víncia, Josê Martiniano de Alencar, a quem expôs o caso e pediu providências. Na época estava destacado na Vila Nova Del-Rei (Campo Grande) João Pereira da Silva, o famoso ca pitão Cara-Preta, a quem Alencar oficiou, mandando que for necesse dez praças ao portador. De posse do ofício do Presi dente, os irmãos Antônio Cirilo e Marcolino João de Queiroz seguiram na direção do Piauí, levando a necessária condução para os dez soldados do destacamento. Em Campo Grande Cirilo encontrou contra-ordem do Presidente, no sentido de não fornecer as praças e mesmo desarmar os portadores. Con ta Cirilo que lhe faltou terra aos pés e que não precisava de Alencar para tomar um desabafo em Pesquizeiros . Com jeito e dinheiro conseguiu de Cara-Preta prosseguir viagem com tudo .que lhe pertencia. Não encontrou em Pesquizeiros Mercês, que fugiu à aproximação de Cirilo com os seus. Os irmãos Queiro zes respeitavam a mulher de Mercês. A vindita foi terrível. Mataram e incendiaram. Os irmãos Queirozes foram presos, processados e julgados pela justiça da Vila de Parnaíba, que os absolveu. Cirilo, anos depois, casa-se e põe no primeiro filho o nome de Justino, que foi o cidadão Justino Sampaio de Queiroz, que pagava letras prescritas a uma parenta milioná ria com o apoio de uma filha, que lhe dizia que dívida de ho mem de bem não prescrevia.

O ato de Alencar, mal interpretado, afastou os Queirozes de Santa Maria das fileiras do Partido Liberal. Alencar não tinha jurisdição na província do Piauí, onde Justino fôra mor to, razão por que deu contra-ordem a Cara-Preta.

O Padre Antônio Pinto de Mendonça, no primeiro govêrno de Martiniano de Alencar ( 1834-1837), indispôs-se com o seu irmão em Cristo, e, assim, estêve contra êle no segundo go vêrno de Alencar ( 1840-1841). Assim, Pinto de Mendonça em 1841 pôs em pé de guerra a localidade de Muxuré, pertencen te à sua freguesia. (Quixeramobim). Estavam reunidos em Muxuré os melhores elementos conservadores com Antônio Cirilo à frente que com a sua corneta de guerra fêz figura e meteu mêdo nos matutos. O Presidente Alencar valeu-se de Pedro de Queiroz Lima, então comandante da Guarda Nacio nal, em Cascavel, para comandar as tropas legais. Pedro de Queiroz partiu sem perda de tempo para o teatro da lut11 com numerosa fôrça, levando como oficiais João Aires da Silva Oli val, seu concunhado, e Francisco Baltasar Ferreira Facó, seu futuro genro. Quando as tropas do Presidente chegaram a Qui xeramobim, os elementos revoltosos, reunidos em Muxuré, dis persaram.

O rompimento político entre Pinto de Mendonça e Alen car teve por origem: no primeiro govêrno de Alencar vagou a paróquia de Fortaleza, qqe Pinto desejava e que coube a Peixoto de Alencar, primo do Presidente, por quem Alencar trabalhou.

Antônio Cirilo estêve em Muxuré contra o tio legítimo Pedro de Queiroz Lima (pela primeira vez membros da nu merosa e opulenta família Queiroz lutavam em campos opos tos) , com QUm lutou nas guerras contra Pinto Madeira.

Vem ainda a propósito de Cirilo o "fogo do Tartaruga" de que êle foi participante, ou pelo menos, a que estêve pre sente .

A situação liberal do Ceará, que sucedeu à Maioridade, foi de curta duração.

O Senador Alencar, que foi figura de prol no movimento de 23 de julho de 1840, preferiu a presidência do Ceará a qualquer outro alto cargo a que fizesse jus. Decerto desejava continuar a beneficiar a terra natal, como fizera na primeira administração. Mas o seu segundo govêrno foi curto e de' lutas, pouco podendo fazer administrativamente. Sucedeu-lhe no govêrno o Brigadeiro Coelho, em que o ódio conservador en cheu a Província de lutas e de crimes, chegando a ser bàrba ramente assassinado o Major Facundo, de emboscada, na sua própria casa de residência . . . Com a nova situação ficou de cima Antônio Cirilo e debaixo os demais Queirozes, quando se deu o caso do Tartaruga.

Vicente Morais Rêgo casou-se com uma filha de Antônio Pereira da Casa Forte, de quem não teve filhos. Por morte de Maria Leandra de Queiroz, Morais Rêgo casou-se em segun das núpcias com Maria Alves Feitosa, de quem nasceu Manuel de Morais Rêgo - o Tartaruga. Por morte de Morais Rêgo, Maria Feitosa casou-se com Francisco Sabino de Queiroz, filho também de Antônio Pereira, da Casa Forte, de quem não teve filhos. Assim, os pais de Tartaruga casaram-se com dois mem bros da família Queiroz, sem que êle fôsse Queiroz. Por morte de sua mãe, Tartaruga suscitou questões de herança com o pa drasto Sabino de Queiroz, que se entendeu com os sobrinhos Antônio Cirilo e Marcolino João, para que conseguissem um entendimento amistoso com Tartaruga. Os sobrinhos de Sabino prestaram-se de boa vontade, mas nada conseguiram de Tarta ruga, que era mau e rixento, Os dois moços de Santa Maria levaram Tartaruga prêso para a Fortaleza, de quem tinham recebido fortes injúrias. No primeiro descanso, na lagoa da Ponciana, na fazenda Flora, Tartaruga portou-se de tal modo ue um dos seus condutores lhe deu um tiro no ouvido que o prostrou sem vida . Marcolino foi processado e julgado por êsse crime. No célebre júri de abril de 1856, em que foi condenada Dona Maria Lessa, a Dona Guidinha do Poço, na Vila de Campo Maior de Quixeramobim, Marcolino foi julgado e ab solvido pelo crime do Tartaruga. "Antiga Família do Sertão" de Esperidião de Queiroz traz um capítulo sôbre êsse crime. (Vide "Fastos do Ceará-", de Boanerges Facó, Rev. do Institu to do Ceará, ano de 1858, págs . 46 usque 58) .

Antônio Cirilo não voltou mais ao seio do Partido Liberal, mesmo no comêço da República, no govêrno do primo Gene ral Clarindo de Queiroz. Votou, na eleiç'ão de senadores esta duais, no primo legítimo Dr. Arcelino de Queiroz por uma troca de chapàs, hàbilmente feita, pelo parente comum dos dois, Eduardo Caúla. Cirilo, então, já tinha 80 anos .

Os filhos mantiveram a mesma linha partidária. Assim é que seu filho Antônio Severiano de Queiroz 'Fotô, casado com a minha tia legítima Joana Ft::rreira de Queiroz, foi sempre Nogueira Accioly, por dezenas de anos. Accioly abandonou-o por novos amigos de maior prestígio, mas êle se manteve afas tado das competições políticas. Não estêve mesmo com Franco Rabelo, casado com uma Queiroz, quando o Ceará quase todo era rabelista. Totô, no ostracismo, lia e relia dezenas e deze nas de cartas do próprio punho de Nogueira Accioly.

No verão de 1904 estávamos nós, meu irmão Frederico Facó e eu, na fazenda Olinda, no sertão do Sitiá, residência de Totô. Realizou-se a essa época, no Ceará, a eleição de Sena dor da República. Era candidato oficial o Dr. Pedro Augusto Borges, que ia ocupar o lugar de Nogueira Accoly, que a 12 de julho havia assumido o cargo de Presidente do Estado. Queiroz Totô trabalhava por Pedro Borges. Um dia chegou em casa à meia noite. Vinha do saco da Serra Azul. Frederico e eu abri mos-lhe a porta, de vez que dormíamos na sala de visita. Totô, quando descia do cavalo, pisou em falso e caiu, queda sem conseqüências. Frederico falou assim: "Também você a estas horas ainda fazendo política!"

Era assim o sertão violento, destemido, opulento e bom dos nossos antepassados...