1954 FASTOS DO CEARÁ
Este texto foi originalmente publicado na Revista Instituto do Ceará.
BOANERGES FACÓ
I - FREI MIGUEL DE SANTA TERESA
Entre 1750 e 1760, Antônio Pereira de Queiroz, filho do português Inácio Pereira de Queiroz Lima e da pernambucana Francisca Cavalcante Vasconcelos, natural da fazenda Barro Vermelho, na ribeira do Banabulú, neste Estado, numa viagem em que fôra vender gado em Pernambuco (Antônio Cirilo, no seu Manuscrito sobre a família Queiroz, diz ter sido o primeiro cearense a negociar com o gado do Ceará em Pernambuco), de volta trouxe em sua companhia um frade franciscano do Convento da Bahia, cujo nome epigrafa êste trabalho. Frei Miguel, segundo o mesmo Antônio Cirilo, estava licenciado durante 16 anos, pela Ordem, na colheita de esmolas.
Esse encontro fortuito entre o meu quartavô e Frei Miguel havia de dar origem a uma grande e sincera amizade entre os dois, de bases tão sólidas, que só a morte extinguiria.
Em Barro Vermelho encontraram os dois velhos a morte. O Frade assistiu-lhes os últimos momentos com todo o conforto da Religião. Deram-lhes sepultura na Capela de São João do Jaguaribe, hoje distrito do município de Limoeiro, onde já tinham sido sepultados, quando no local da Capelinha existia apenas uma Cruz, Antônio Duarte de Queiroz e Isabel Cavalcante Vasconcelos, pais de Francisca Vasconcelos e sogros de Inácio de Queiroz, e meus sextavós. Ali, na Capelinha, Frei Miguel celebrou seis missas pelos falecidos nos dias de Nascimento, da Paixão e da Ressurreição, missas que, conforme Antônio Cirilo, ficaram como uma tradição na família Queiroz.
Liquidados os negócios dos Queirozes no Barro Vermelho e feita a partilha (Inácio de Queiroz, conforme Antônio Cirilo, era português preguiçoso e afidalga- do, mas, econômico naqueles bons tempos, deixou regular fortuna) dos bens do casal, Antônio Pereira e a mulher, que ainda não tinham filhos, acompanhados de Frei Miguel, vieram para o Sitiá, em Quixeramobim, onde já moravam José Pereira Cavalcante e Ana Pereira de Queiroz, irmãos de Antônio Pereira e casados com os irmãos Simião Correia de Araújo e Francisca da Rocha Maciel, irmãos de dona Helena, mulher de Antônio Pereira, e filhos do Cap. Joaquim Correia de Araújo e de Anastácia Maciel de Melo. Os últimos eram meus quintavós. Joaquim Correla e dona Anastácia, que moravam na fazenda Papagaio, nas várzeas do Apodi, no Rio Grande do Norte, vieram, a convite dos filhos e genros, morar no Sitiá, onde compraram uma légua de terra e puseram-lhe o mesmo nome da fa- zenda do Apodi.
Em Sitiá, Antônio Pereira requereu três léguas de terra sobre uma de largo, no saco da Serra Azul. Esse requerimento despertou ambições que dormiam acoitadas pelo mêdo. É que a ambição humana não tem limites e nem entranhas.
Assim, Bento Bezerra e outros, que haviam, anteriormente, requerido a mesma "Data de Sesmarla", não se tinham atrevido a fazer posse com receio dos indíge- nas, mas, quando viram Antônio Pereira, "homem resoluto", enfrentar o perigo e beneficiar a terra, tornando-a calma e respeitada, surgiram, ganaciosos e solertes, sobre a propriedade alheia.
Daí, a demanda que Antônio Pereira, apoiado por seu querido amigo Frei Miguel, teve de enfrentar e vencer seus adversários ambiciosos e covardes.
Frei Miguel, homem inteligente e culto, que entendia também de leis, fol provisionado pelo amigo, que defendeu nas duas instâncias. Perdeu a questão na Capitania, mas apelou para a Relação da Bahia, a única existente então na Colônia, tendo Frei Miguel acompanhado os autos à instância superior, onde logrou reforma da primeira sentença, comentando o velho Antônio Cirilo, irreveren- te e perverso, não saber se por "Justiça" ou por "empenho". Foi inteira justiça do Tribunal Superior. Os autores dinheirosos se conformaram e, porisso, Antônio Pereira não lhes cobrou as despesas judicials.
E num dia 8 de setembro, de ordem do Governador da Capitania, as Justiças de Aquirás ė Quixeramobim foram à Serra Azul imitir, solenemente, na posse Antônio Pereira, o que se fez com grandes festas, dia que deu à pro- priedade a denominação de Natividade.
Definitivamente, na posse da sua propriedade, Antônio Pereira fez bôas casas para residência, beneficiamento de mandioca e algodão, e mals outra, num terreno elevado, próximo à residência que ainda conserva o nome de "Alto do Frade", para Frel Miguel, onde ele morava e celebrava os atos religiosos. All passaram 12 anos e nasceram todos os filhos do casal. Decorrido esse lapso de tempo, Antônio Pereira arrematou em Aquirás mediante procuração passada, em Quixeramobim, ao irmão de José Pereira Cavalrante, as fazendas Ipueiras, anexa à Serra Azul, e Curralinho, no alto Sitiá, para onde se mudou. Acompanhou-o o bom Frade.
Antônio Pereira passou mais de dois lustros no saco da Serra Azul na mais completa paz e proficuo trabalho que lhe trouxeram prosperidade e regular aumento de fortuna, sempre respeitado de todos, mesmo pelos próprios indigenas, "devido, talvez, às feitiçarias de Frei Miguel", acrescenta o irreverente velho do Manuscrito. (Antônio Cirilo era maior de 80 anos, quando passou para o papel o que trazia na formidável memória sobre a família Queiroz).
Ele assim dizia, dentro de seu espírito "voltaireano", imas não pensava, pols fala sempre com entusiasmo e admiração de Frei Miguel. Conta-nos que a sua tia-avó, Maria de Jesus, freira da Ordem Terceira de Pernambuco, que era criança quando Frei Miguel deixara o Curralinho, aos 80 anos, ainda chorava copiosamente ao falar na saida do extraordinário Frade.
Poucos anos depois da mudança para o Curralinho, em 10 de julho de 1774, falecla Antônio Pereira, deixando a viuva, dona Helena, que só velo a falecer em 1811 sem convolar a novas núpelas. Era senhora de elevadas virtudes crista e de educação. Conta-nos o autor do Manuscrito que um dia a menina Isabel, sua filhinha de 6 anos, que foi mais tarde mulher do Sargento-mor José Lopes Barreira e avó de Antônio Cirilo, fôra levar o almoço ao Frade e ao voltar disse à mãe que êle o tinha posto sobre a mesa, sem se servir logo. De certo não tinha o hábito de fazer assim. Dona Helena castigou a filha para não mais comentar o que visse na casa alheia.
Com a morte do bom amigo, cuja vida os médicos de Aracati e de Fortaleza, assim como o próprio Frei Miguel, que segundo Antonio Cirilo, "também entendia de cura do corpo", não puderam salvar. O Frade não quis mais ficar mo Sitiá e voltou para o Convento, deixando infindas saudades e conduzindo avultadas esmolas e presentes, entre os quais o cavalo de estima e da montaria do amigo. Deixou o Curralinho depois que deu sepultura ao amigo na Capela de Quixeramo- bim e lhe celebrou as exéquias. Os homens que o conduziram do Sitiá, êle os fez voltar do Cariri hoje Crato, não dando mais qualquer notícia de si.
Frei Miguel de Santa Teresa, que morou cêrca de 20 anos com Antônio Pereira de Queiroz, prestando-lhe valioso auxílio material e espiritual, batizando-lhe todos os filhos e assistindo-lhe os últimos momentos de vida, foi como que uma espécie de anjo da guarda, na vida e na morte, do digno Queiroz tronco comum de ilustres famílias e notáveis vultos nas letras e nas armas do Ceará.
II - NUMA GRANDE SÊCA (1790 — 1793)
O flagelo assolou o Ceará durante longos anos. Os campos despiram-se de verduras, os sêres humanos buscaram as regiões litorâneas, os gados que não foram retirados, pereceram de fome, sêde e peste.
Era o sertão combusto que mais uma vez se estorcia nas convulsões tremendas da nova crise climática; era a vida que se extinguia nas gargalheiras da na- tureza impiedosa e tétrica; era a morte que, indiferente e satânica, envolvia o Ceará num drama dantesco e numa destruição homérica.
Cruz Filho, na sua pequena "História do Ceará", fala nessa imensa calamidade em que "ficaram desertas as fazendas pela mortandade do gado e pela emigração dos criadores", calamidade que ficou na tradição popular como a SECA GRANDE. A sêca foi tão grande nos domínios dos Queirozes que Antônio Cirilo, homem sem instrução mas inteligentíssimo, no seu precioso Manuscrito sobre a família Queiroz, diz que na fazenda Santa Maria, na ribeira do Sitiá, de propriedade de seu avô, o Sargento-mor José Lopes Barreira, só escapou, dentre centenas de rêzes, uma vaca branca, de que o dono fez depois matalotagem.
Alguns Queirozes deixaram o Sitiá, no Quixadá, núcleo donde a Família se irradiou para muitos pontos do Brasil, e vieram para Cascavel, ou melhor para Aquirás, que compreendia a êsse tempo as terras de Cascavel, que somente em 1833 foi desmembrado da antiga sede da Capitania do Ceará Aquirás, município desde 1700. Os Queirozes não vinham à aventura, porque vieram para as terras de alagadiço, que o Sargento-mor possuia all. Não foi uma transmigração, como o föra a de cêrca de 50 anos atrás do Barro Vermelho primitivo núcleo dos Queirozes no Ceará, nas ribeiras do Banabuiú, para o Curralinho, no alto Sitiá, em vitude das atrocidades dos irmãos Francisco e Manuel Pereira de Queiroz, atrocidades que abreviaram os dias de vida de seus velhos pals Inácio Pereira de Queiroz Lima e dona Francisca Cavalcante Vasconcelos e trouxeram para Quixada Antônio Pereira de Queiroz e sua mulher Helena de Oliveira Maciel meus quartavós e outros parentes.
Dentre os Queirozes, vindos para Cascavel, veio, ainda, solteiro, José de Queiroz Lima meu trisavõ que, all contraiu núpcias com Inácia Lopes da Costa, filha do Capitão-mor Francisco Xavier da Costa e neta de Baltazar Lopes Barreira, do Quixinxé, ambos portuguêses. о dono da fazenda Quixinxé, casando as filhas Ana Maria е Leandra Maria, respectivamente, com José Ferreira do Vale Filho e Antônio Pereira de Queiroz Lima, fez a aproximação entre os Queiroz Ferreira. Mals tarde Pedro Queiroz Lima, filho de Antônio Pereira, e Baltazar Ferreira do Vale, filho de José Ferreira, que eram primos legítimos pelo lado materno, casaram-se, respectivamente, com Francisca Helena, filha de José de Queiroz, e com Catarina Teixeira, filha do português Alexandre José Teixeira e de Francisca Xavier da Costa, irmã de Inácia, mulher de José de Queiroz.
Realizaram-se depois os casamentos de Francisco Baltazar Ferreira Facó, e João Tomás Ferreira, respectivamente, com Maria Adelaide e Laurentina de Queiroz, filhas de Pedro de Queiroz, meus avós paternos e maternos. Eis cs Ferreira Queiroz de Cascavel, oriundos de José de Queiroz Lima e outros ascendentes ligados entre si.
No ano de 1790, inicio da grande sêca, Antônio Pereira foi nomeado juiz ordinárto de Quixeramobim e José Lopes Barreira encarregado do Almoxarifado da Ca- pitania do Ceará com sede em Aquírás. Assim, Antônio Pereira de Queiroz ficou prêso ao sertão abandonado, no cumprimento dos deveres profissionals. Mu- dou-se de sua fazenda Ipueiras para a Serra-Azul, donde lhe era mais fácil a viagem semanal para as audiências em Quixeramobim e mais suportável a vida. Ali permaneceu durante o quatriênio e fez tantas viagens de 18 léguas entre Serra- Azul e Quixeramobim, quanto o número de semanas de seu tempo de exercício de julz, viagens em que tomava todas as precauções, para que o cavalo de sua montaria não fôsse, à noite, no rancho, ou na bebida em Quixeramobim, devorado por animais selvagens e famintos.
Conta-nos Antônio Cirilo que durante a calamidade os Queirozes de Cascavel e Aquirás enviavam todos os mêses três bois carregados de tudo que faltava na Serra-Azul e de lá voltavam os animais carregados de peles silvestres e de grande quantidade de cêra e de mel de abelha.
O Sargento-mor, um dos homens mais ricos da época, na sede da Capitania, exer- ceu durante toda a sêca, gratuitamente, o elevado cargo de Almoxarife da Capitania do Ceará. Fazia vir de Caravelas, na Bahia, à sua custa, barcos carregados de gêneros de primeira necessidade, de que, ressarcido das despezas, fazia distri- buição gratuita entre os parentes e a pobreza.
Em 1794, terminado o flagelo, o Poder Público deu a José Lopes Barreira a patente de Sargento-mor de Aquirás, mas o povo lhe fez a devida justiça ao denominar de "Cajueiro do Ministro" o sitio de sua propriedade em Aquirás, por onde passei várias vêzes, em homenagem ao nobre e desinteressado representante da Fazenda Real na Capitania do Ceará; e a Antônio Pereira de Queiroz, em 1796, El-rei, atendendo a uma recomendação especial do Governador da Capi- tania sobre os serviços por êle prestados à causa pública, concedeu-lhe a patente de Capitão de Ordenanças de Quixeramobim!
Foi, é e será sempre assim a justiça dos homens...
José de Queiroz, embora sem a irrepreensibilidade de costumes do irmão Antônio Pereira, que passou 42 anos viúvo (enviuvara aos 40) de todo continente, ou do cunhado José Lopes que, durante o exercício do alto cargo que lhe confiara o Governo, esteve afastado da própria mulher legítima, era homem inteligente e destemido que andou sempre ligado às lutas liberais do comêço do XIX século. Deixou descendentes dignos e ilustres, tanto que Raquel de Queiroz, mulher do Dr. Arcelino de Queiroz Lima e descendente na linha materna do Tenente de Milicias do Tapuiará Inácio Lopes Barreira e de Joana Batista de Queiroz e na paterna do mesmo casal e de Antônio Alves de Lima, considerava, como a sua, a família do marido em Cascavel.
Arcelino de Queiroz, neto de José de Queiroz e meu tio-avó, foi Senador estadual no governo do General Clarindo, que não o fez desembargador porque êle só aceitaria êsse cargo se a sede do Tribunal fösse na Califórnia.
Sim, a Califórnia - fazenda que lhe doou o tio-avó Miguel Francisco de Queiroz e onde êle levantou a melhor casa de morada do sertão na época, que não chegou a habitar, construção que êle projetou no Riacho Fundo, no sítio do avô, mas que ficou nos alicerces, ainda ali existentes.
No Riacho Fundo, próximo de Cascavel, José de Queiroz teve largo prestígio político e social e hospedou presidentes da Província.